segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Alegria e envolvimento para resistir


Com 11 anos de fundação, Barcemonas (PA) é a equipe pioneira do futebol
LGBTQIAPN+ da região Norte do Brasil (Foto: Arquivo Barcemonas)

Nossa viagem em visita ao momento de formação das primeiras equipes LGBTQIAPN+ do Brasil segue rumo no sentido oposto da expressão “do Oiapoque ao Chuí”, deixando os pampas gaúchos em direção ao norte do Brasil, mais especificamente a Ananindeua (PA). Nesse município, região metropolitana da capital Belém, um grupo de amigos gays se inspirou no futebol feminino para começar a praticar a modalidade mais popular do país.

Ananindeua (PA), abril de 2010

“Frequentando os jogos de amigas, surgiu a ideia de montarmos um time totalmente formado por gays para jogar contra equipes femininas. O que inicialmente seria só uma brincadeira fez surgir, com o tempo, o pensamento de firmar uma equipe de fato, chamada As Maluquinhas Gay”, conta Jhonata Nascimento, popularmente conhecido como Vassourinha.

A iniciativa dividiu opiniões na região. Segundo o membro da diretoria e secretário da equipe, as palavras de incentivo dividiram espaço com os comentários maldosos, que persistem até hoje, algo enfrentado pelas equipes inclusivas, em geral. “Mas a gente se mantem firme no amor pelo esporte e pela causa LGBTQIA+”, reforça.


Formação inicial do Barcemonas (PA), ainda como As Maluquinhas Gay,
que defendeu a equipe entre 2010 e 2014 
(Foto: Arquivo Barcemonas)

Inspiração no Velho Continente

O nome escolhido permaneceu por quatro anos. Foi quando bateu mais forte a paixão por um clube do outro lado do Atlântico. “Nosso atleta e vice-diretor Artur era muito fã do Barcelona e queria trazer algo que homenageasse o clube e, ao mesmo tempo, fizesse uma referência à nossa comunidade LGBTQIA+”, relembra o atacante e membro da direção do time que passou a se chamar Barcemonas.

A esse trocadilho, por sinal, se rendem inclusive aqueles quem não conhece tão bem o esporte inclusivo, encantados com a perspicácia do jogo de palavras. Os nomes bem-humorados, por sinal, são uma característica dos grupos esportivos LGBTQIA+, o que, por si só, já renderia uma matéria à parte. Fato é que o Barcemonas passou a ser cada vez mais conhecido em sua cidade e estado, ganhando a mídia e, finalmente, um novo salto foi dado em 2019, com a filiação à LiGay Nacional de Futebol.

Jhonata avalia as mudanças no cenário esportivo LGBTQIA+ da fundação da equipe, em 2010, até hoje: “Naquela época não se tinha muitas equipes, hoje a gente percebe cada vez mais o surgimento de novas equipes, algumas das quais nos procuram para dizer que se inspiraram em nós. Quando olhamos para alguns anos atrás, vemos uma brincadeira se tornar algo de grande magnitude e encorajou o surgimento de novas equipes do interior do nosso estado”.

Prestes a disputar a Champions LiGay pela primeira vez em 2020, a equipe teve seu sonho adiado devido à pandemia de Covid-19, mas aguarda com ansiedade a oportunidade de se unir a dezenas de grupos esportivos LGBTQIAPN+: “Estávamos na fila de espera para participação na LiGay, mas agora com as seletivas regionais, vamos disputar uma vaga com outras equipes da região Norte, estamos ansiosos”, conta Jhonata, que tem um bom motivo para dizer que traz mais “alma” à equipe: cabe a ele a missão de dar vida a Monacletty, a mascote humana do Barcemonas, uma empreitada ousada de marketing que aproxima o time de sua torcida conquistando fãs por onde passa.


Monacletty venceu a votação nas redes
sociais e nomeou o mascote, então ainda
de pelúcia (Foto: Arquivo Barcemonas)

Do escudo à pelúcia e, então, à vida

Apesar de o grupo ter completado 10 anos de existência e resistência em abril de 2020, a comemoração só veio em agosto, devido ao cenário causado pela pandemia, mas isso não foi motivo para deixar de inovar: foi decidido que o unicórnio presente no escudo ganharia uma forma concreta, inicialmente em pelúcia.

Nada mais democrático que eleger o nome da mascote por meio de votação nas redes sociais. Dentre as quatro opções listadas no Instagram e no Facebook para escolha de integrantes da equipe de futebol gay e feminino e também do público em geral, Monacletty foi a vencedora, batizando o pequeno unicórnio que logo passou a viajar com o time nos compromissos pelos gramados e quadras do Pará e do Amazonas.

Mas não era o suficiente para a diretoria, que teve a partir de uma novela brasileira a ideia do passo seguinte. Um ator fantasiado de unicórnio na telinha rapidamente incendiou a mente de dirigentes do Barcemonas, que já vislumbravam ali a versão humana do mais novo xodó do grupo, inclusive alvo de reportagens da imprensa local.


Pé-quente, Monacletty posa com a equipe antes de sua estreia
com direito a goleada (Foto: Arquivo Barcemonas)

Quando se idealiza uma mascote humana como ação de branding e marketing, a aproximação com o público como reforço para a marca é uma das principais consequências do uso dessa ferramenta. O êxito da mais nova integrante não poderia ser maior, na opinião de Jhonata.

“A interação é perfeita. Onde o Barcemonas ia levando a Monacletty, o público ia junto para ver as brincadeiras, nossa animação. Ela foi um motivo a mais para irem nos assistir, foi a cereja do bolo”, conta o rapaz, conhecido em sua região como “Vassourinha”, lembrando que o xodó da torcida acompanha o time apenas nos jogos mais importantes, como os clássicos LGBTQIAPN+ e as partidas disputadas em campo de grama natural, terreno onde a equipe atua de forma mais tradicional.

Alegria para todos

A mascote foi pé-quente, diga-se de passagem: o dia 16 de maio marcou a estreia de Monacletty animando a torcida em meio a uma sonora goleada de 5 a 0. Na partida seguinte, um clássico local do futebol LGBTQIAPN+ e nova vitória do Barcemonas, dessa vez por 1 a 0. Nos dois compromissos da equipe, quem tentasse revelar quem animava a torcedora n°1 da equipe descobriria um Jhonata que entra de fato na brincadeira.

Já conhecida em sua região, Monacletty quer ser apresentada
aos outros estados do país (Foto: Arquivo Barcemonas)

“Eu, que fico dentro dela, não tenho nem palavras para dizer como me sinto. Viro criança de novo. O pessoal já sabe que sou eu, mas quando estou lá, nem me chamam pelo meu nome, mas pelo da mascote. Isso para mim já é um reconhecimento, um carinho por mim e pelo time”, conta, entusiasmado.

Quando se trata do público infantil, não é difícil entender por que o rapaz pensava, desde o início do processo de construção da Monacletty, em uma mascote que traria alegria para as crianças. “Numa viagem ao município de Augusto Corrêa, bem distante de Belém, encontramos muitas crianças. Onde a mascote ia, elas seguiam junto. Lá os pequenos não tinham acesso a muito entretenimento, então era uma grande diversão para eles. Aproveitamos também para fazer uma distribuição de doces e chocolates para eles”, relembra Jhonata, que já estabeleceu a próxima meta para a personagem à qual dá vida:

“A Monacletty já circulou bastante por aqui, é bem conhecida aqui na região. Agora queremos levá-la para outros estados. Quem sabe, nossa equipe conseguindo a vaga na Champions LiGay 2022, seja a chance de mostra-la para o Brasil?”

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Homenagem concretizada em representatividade

                            
Grupo do Magia (RS) em 2013, na quadra onde os encontros aconteciam:
e
quipe começou a ser formada ainda no futsal (Foto: Arquivo Magia)

Depois de conhecer o pioneirismo do Real Centro (SP) em reunir gays fãs de futebol para encontros semanais para praticar o esporte que amam num ambiente seguro e livre de qualquer preconceito, nossa viagem no tempo segue para o sul do Brasil, 15 anos depois da primeira pelada dos pioneiros da inclusão no Ibirapuera.

Porto Alegre (RS), março de 2005


O pontapé inicial para a formação do
Magia (RS) foi dado em um bar de
Porto Alegre (Foto: Arquivo Magia)


Quem disse que a combinação bar + futebol não vale para as pessoas LGBQIAPN+? Se para a equipe paulista as peladas sempre terminavam em bebida e resenha, foi em um desses estabelecimentos que um grupo de amigos na capital gaúcha teve, no começo de 2005, a ideia de se juntar para bater bola. “A galera estava num bar, começaram a falar de futebol e pilharam a ideia de jogar. Marcaram em uma quadra de futsal em um colégio de freiras, onde os encontros aconteceram durante muito tempo”, conta Carlos Renan Evaldt.

O início nas quadras não impediu que o time que viria a se tornar o Magia Sport Club (RS) se adaptasse ao futebol 7 que viria a consagrar o movimento nacional de equipes LGBTQIAPN+ de futebol. O mergulho de fato nessa empreitada aconteceria em meados de 2017, quando souberam da realização da primeira edição da Champions LiGay, mas a decisão de oficializar a criação de uma equipe propriamente dita aconteceu meses antes, a partir de uma situação que marcou os integrantes.

“Em fevereiro de 2017 tivemos uma grande perda no time. O Junior, que organizava os encontros e incentivava o pessoal a comparecer, foi acometido por uma doença rara e faleceu em questão de três semanas. Antes da despedida dele fizemos uma oração em quadra e nos questionamos se pararíamos ou continuaríamos com a equipe. Decidimos continuar até mesmo como homenagem a ele”, relembra Renan, que assumiu naquela ocasião a organização do grupo como equipe de fato.


Equipe do Magia em dia de pelada em 2016, ainda com Junior
(de amarelo, mais à direita), em homenagem a quem o grupo decidiu
oficializar a criação da equipe (Foto: Arquivo Magia)

O passo seguinte foi a escolha das cores, que não poderia ter sido mais democrática em um estado que é cenário de uma das maiores rivalidades do país: o azul do Grêmio combinado com o vermelho do clube para o qual Renan torce, o Internacional. A encomenda do primeiro uniforme, em março de 2017, pavimentava o caminho para o pioneirismo na região, que também se estendeu para outros esportes que o Magia abriu ao público, como o vôlei, o handebol e o jiu-jitsu.

Antes disso tudo, uma nova homenagem ganhou contornos concretos no escudo do clube. Partindo do princípio segundo o qual estrelas em escudos representam títulos conquistados, muitos poderiam se perguntar o motivo de uma ter sido inserida no escudo de uma equipe recém-criada. Renan explica:

“Quando fizemos o nosso escudo, colocamos uma estrela que representa o Junior e todo o esforço que ele fez lá no início para manter viva a essência do Magia, então a estrela que temos é uma homenagem a ele e também a outras pessoas que fizeram parte da nossa história e, mesmo não estando mais conosco no time, seguem em nossos corações”, conta o atual presidente.

Expansão impulsionada pelas redes

Levando em consideração que só em 2010 nasceria a próxima equipe com propósito inclusivo, seriam mais cinco anos apenas com dois grupos em ação pela representatividade LGBTQIAPN+ no cenário do futebol. Só a partir da oficialização do Magia, no entanto, foi possível estabelecer o contato com outros times, como uma grande rede de inclusão e diversidade no esporte. As redes sociais foram, na opinião de Renan, o fator decisivo para esse alcance.

“A gente vivia numa ‘ilha’ aqui no Sul, não sabíamos da existência de outras equipes e não tínhamos a noção da importância disso tudo até 2017. As redes sociais proporcionaram esse contato com as equipes do restante do Brasil, sobretudo de Rio e São Paulo. O motivo desse hiato foi a falta de contato e de informação”, destaca, acrescentando que a Prefeitura de Porto Alegre chegou a promover um evento que reuniu equipes com a mesma proposta, mas que não foram à frente.


Primeira edição da Champions LiGay, no Rio, em 2017, foi
um divisor de águas para o Magia se considerar parte de um movimento
nacional de diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Uma vez iniciado esse contato interestadual, o Magia confirmou a participação na primeira edição da Champions LiGay, no Rio de Janeiro. A competição firmaria o futebol 7 society como o terreno padrão das competições entre equipes com propósito inclusivo, levando os gaúchos a trocar as quadras de futsal pelos gramados sintéticos, algo novo para 90% da equipe, segundo o dirigente. Finalmente se abriam para a mais nova equipe esportiva LGBTIAPN+ as cortinas de um movimento que já ganhava contornos nacionais, com o aparecimento de focos em diferentes estados.

“Ninguém na nossa ‘bolha’ tinha dimensão do que era o esporte LGBTQIAPN+ até 2017. Aquele ano foi um divisor de águas para nós, que não pensávamos em disputar nada porque sabíamos que não seríamos bem-vindos entre as equipes ‘tradicionais’. Depois da primeira LiGay, no Rio, fomos descobrindo todo um universo. Soubemos que existem equipes inclusivas na Europa e nos Estados Unidos e também que é realizada uma ‘olímpiada’ (os Gay Games). A descoberta de que não estávamos sós no esporte e que podíamos disputar um campeonato sem ser hostilizados foi uma sensação maravilhosa”, desabafa.

A possibilidade de furar essa bolha e fazer contato com grupos esportivos com proposta inclusiva de outros estados foi proporcionada pelas redes sociais. Wagner Xavier de Camargo, pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, analisa a contribuição dessas ferramentas para o crescimento do movimento.

“Virou uma febre isso de mostrar que ‘sim, nós podemos jogar futebol’, o que é muito positivo. As redes sociais são um elemento fundamental, sem elas isso não teria acontecido. Houve grupos de diferentes modalidades em diversos lugares, mas nunca como um movimento sistematizado, talvez pela falta de divulgação. As redes foram um fator importantíssimo para esse crescimento, até mesmo pelo fator motivação de ver que outros estão fazendo”, conta o pesquisador, que encontrou, nos Gay Games 2006, em Chicago, atletas do Rio de Janeiro jogando voleibol juntos.


Futebol feminino é mais uma das vias pelas quais o Magia milita no cenário
da inclusão e da diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Conservadorismo: retrocesso e combustível ao movimento

Para Renan, comparar o cenário da inclusão no esporte entre o ano de fundação do Magia e a luta que as equipes enfrentam hoje torna inevitável envolver o fator político e a onda de conservadorismo incitada por Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência em 2018.

“Em 2005 acredito que o cenário infelizmente era melhor que hoje, já que a conjuntura política era muito mais favorável ao LGBT+. Com a chegada desse governo de direita e os ‘incentivos’ do presidente, as pessoas se sentiram mais livres e mais à vontade para agredir, ofender e agir de forma LGBTfóbica. Não que em 2005 o cenário fosse bom, mas hoje vivemos algo pior. Chegávamos para jogar e recebíamos olhares de desconfiança, tipo ‘o que vocês estão fazendo aqui?’, mas acredito que houve um retrocesso grande na questão da aceitação”, analisa o presidente do Magia.

Na opinião de Wagner Xavier, o boom do surgimento de equipes inclusivas entre 2015 e 2017 se ancorou no fato de o conservadorismo ainda não ter avançado naqueles anos como a partir das últimas eleições presidenciais. Por outro lado, segundo o pesquisador, o crescimento da direita também fortalece a vontade das pessoas LGBTQIAPN+ de lutar por seus direitos, inclusive no esporte.

“Além do contato proporcionado pelas redes sociais, também se tinha (até 2017) um recrudescimento de valores conservadores e, com isso, se tem ganhos sociais em todas as esferas, inclusive no esporte. (De 2018 para cá) temos vivido esses tempos sombrios de conservadorismo e uma reação a isso, tanto na sociedade quanto no esporte, é mostrar que as pessoas LGBTQIAPN+ podem praticar esporte. Esse movimento (da diversidade no esporte) é irreversível e tem um lastro de desenvolvimento bastante pronunciado nos próximos anos, principalmente com o fim da pandemia”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Pioneirismo em cenário adverso

 


De azul e amarelo, Real Centro (SP) participa de torneio
entre equipes LGBTQIA+, algo impensável na década de 1990,
quando a equipe se formou (Foto: Arquivo Real Centro)

Se fosse possível estabelecer um marco inicial no esporte LGBTQIA+ no Brasil em termos de integração de equipes, sobretudo no contexto do futebol, 2017 seria esse divisor de águas. Naquele ano, mais especificamente entre junho e julho, os Jogos da Diversidade – que você conferiu nas postagens anteriores aqui no blog – e a primeira edição da Taça Hornet da Diversidade – que você vai ver logo, logo em nova matéria – proporcionaram o início de um movimento que viu nascerem dezenas de agrupamentos esportivos LGBTQIA+ Brasil afora.

Isso não significa, no entanto, que outras equipes já reunissem pessoas com o propósito de inclusão e diversidade. Ainda sem uma estrutura que os unificasse em uma só causa, grupos LGBTQIA+ já praticavam o esporte mais popular do país e proporcionavam a seus integrantes espaços de lazer, sociabilidade e prática da modalidade sem o risco de sofrer o preconceito ao qual estariam sujeitos em outras circunstâncias.

São Paulo (SP), março de 1990

Em 1990 muitos dos atuais protagonistas da onda inclusiva promovida pela LiGay Nacional de Futebol e pela popularização dos Gay Games por aqui ainda eram crianças e outros sequer eram nascidos. Era um ano simbólico: em março a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirava a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

Em uma viagem pelo túnel do tempo, o mesmo Ibirapuera que recebeu os Jogos da Diversidade 27 anos depois passou a ser frequentado por um pequeno grupo de amigos, que se reuniam aos domingos para jogar bola. Ao fim das partidas, a cerveja e a resenha eram garantidas em bares frequentados por gays e simpatizantes no centro da capital paulista, onde convidavam aqueles que se viriam a se tornar novos membros. O fato de muitos dos integrantes participarem de times pelos quais disputavam torneios amadores levou os amigos à decisão de participar de competições. Nascia, ainda sem essa denominação de forma oficial, a primeira equipe inclusiva do Brasil, o Real Centro (SP).

“Àquela altura, não sabiam que nosso time era formado por gays. Não deixávamos transparecer por conta do preconceito, que era muito grande nos anos 90 e continua sendo até hoje. Todo jogo tinha a seriedade que é vista no futebol “hetero”. Já houve brigas entre jogadores, mas tudo se resolvia no campo, na quadra. Saíamos sempre das partidas para os bares do centro ou para a casa de algum dos jogadores. Lá sim dávamos pinta e close, fazíamos a festa, no bom sentido”, relembra Gil Lima, membro da diretoria do Real mais ligado à parte social da equipe, que cuida da organização de eventos e festas.


Em 1992, a equipe do Real Centro (SP) foi ao Rio de Janeiro para disputar
competição que teve entre os árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, o popular
Margarida, primeiro árbitro assumidamente homossexual, falecido três anos depois
em decorrência de sequela
s da AIDS (Foto: Arquivo Real Centro)

Cenário segregacionista como pano de fundo

Pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, o pesquisador Wagner Xavier de Camargo, traça um panorama da visão da época sobre a pessoa LGBTQIAP+ para ajudar na compreensão do cenário encontrado pelos representantes do Real quando da formação do grupo.

“A homossexualidade tinha acabado de sair da classificação de doença mental. Vivíamos o boom da contaminação pelo vírus HIV. Havia um preconceito social de que a AIDS era uma ‘peste gay’. Os espaços de entretenimento então GLS eram segregacionistas, exclusivistas, onde pessoas eram muitas vezes questionadas sobre sua identidade de gênero e orientação sexual”, relembra.

Comparando o que aqueles rapazes encontraram com o momento atual, de surgimento em larga escala de equipes com proposta inclusiva, Wagner é taxativo: “o momento em que o Real surge era muito peculiar, nada parecido com o que é hoje em dia. Havia preconceito na sociedade e claramente no esporte, como ainda há hoje, mas era de uma natureza mais perniciosa”.

Equipe do Real Centro (SP) em 2021: mescla de gerações é marca
da equipe, em constante renovação (Foto: Arquivo Real Centro)

Integração e mistura de gerações

A primeira participação da equipe em uma edição da Champions LiGay, em 2019, foi a maior evidência de que, encorajado pela expansão do movimento, o Real Centro estava definitivamente integrado à causa. “Quando eles vêm a público e se assumem como equipe que acolhe a diversidade, vejo aí uma busca por recontar um pouco de sua história, da proposta inclusiva numa realidade muito mais dura para o acolhimento dessas identidades e orientações, ao mesmo tempo em que se colocam numa vanguarda por terem tradição nisso, mostrando uma capacidade de releitura de si própria e uma nova proposta de trabalho a partir de dentro”, completa o pesquisador.

O posicionamento como equipe assumidamente LGBTQIA+ atraiu jovens como Eduardo Oliveira, então aos 20 anos de idade, às vésperas da Champions LiGay de Belo Horizonte, em 2019. “Me assumi cedo e estava procurando uma equipe assim. Parei de jogar bola com heteros por conta das piadinhas que ouvia. Fui muito bem recebido pelo Real e gostei muito de conhecer a história deles”, conta o zagueiro, hoje com 22 anos.

Um dos representantes da nova geração do Real Centro, Eduardo valoriza o aprendizado que tem no convívio com amigos que participaram dos primeiros anos da equipe azul e amarela. “Acho muito enriquecedora essa troca de vivências entre gerações. Eles enfrentaram muitas coisas nessa saída do armário. É muito importante a história que eles passam para a gente, que, ao se assumir em um tempo diferente, talvez pode não ligar para muita coisa. Eles passaram por uma luta grande lá atrás”, complementa.


Eduardo (em primeiro plano) deixou de se sentir à vontade em peladas devido
ao preconceito e integrou a equipe do Real (Foto: Arquivo pessoal do atleta)

Wagner Xavier vê como algo raro essa convivência entre gerações diferentes e uma “passagem de bastão” no contexto das equipes esportivas, mas acredita que seria necessária uma abordagem ampla para a compreensão mais específica dessas trocas.

“A geração mais nova é a chamada geração ‘do lacre’, já chega exigindo seus direitos, enquanto as mais antigas experimentaram primeiro o armário, a negação, depois o momento da saída do armário, a homofobia da sociedade, da própria família… muitos dos representantes dessa nova geração sequer sabem o que é viver dentro do armário, mas é algo que não se pode generalizar”, finaliza.

NO PRÓXIMO POST...

Acende em Porto Alegre a centelha da inclusão e da diversidade no contexto do esporte, com a formação do Magia (RS), em 2005. Era o segundo foco de um movimento que seguiria para a região Norte do país e viria a ganhar contornos nacionais.

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

A experiência da representatividade


Cariocas do BeesCats (RJ) fizeram sua primeira de muitas viagens
para competições LGBTQIA+ (Foto: Arquivo BeesCats)

Sei que não falo apenas por mim quando digo que, em algum momento, passou pela mente de muitos atletas de equipes LGBTQIA+ a ideia de ser jogador profissional de futebol. Os Jogos da Diversidade 2017, que você conheceu ou relembrou na matéria anterior, reuniram ingredientes capazes de potencializar essa experiência.

Organizado em um espaço público – o Ibirapuera –, o evento foi amplamente difundido como parte do calendário da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, o que certamente atrairia público à maior cidade do país, e contou com presença da mídia, sobre a qual você confere maiores detalhes a seguir.

Todos esses elementos faziam dos Jogos a primeira oportunidade de muitos integrantes desses grupos viverem uma experiência de atleta profissional. Que o digam os jogadores do BeesCats, caçula entre as equipes LGBTQIA+ presentes na ocasião e a única representante de fora da capital paulista.


BeesCats (RJ) e Natus (SP) se enfrentam em quadra enquanto atletas
do Bulls (SP) acompanham a partida (Foto: Arquivo BeesCats)

“Aquele primeiro torneio para nós era 'O EVENTO', como se estivéssemos indo para os Jogos Olímpicos. Para a gente foi muito importante, juntamos uma galera, organizamos nossa primeira excursão do time, todos hospedados na mesma casa… foi uma experiência muito legal. Ali descobrimos o quão bacana era partir para esse caminho”, relembra André Machado, fundador e presidente do BeesCats.

Seu xará André Bugrinne estava nos primeiros encontros que deram forma ao time. Hoje vice-presidente do “Bees”, ele recorda a sensação de participar de sua primeira competição inclusiva fora de sua cidade e destaca a diversidade refletida nos perfis de pessoas que encontrou no Ibirapuera.

“A experiência foi sensacional, você se sente como se fosse um atleta de grande clube ao entrar em quadra e a torcida cantar seu nome ou então ser anunciado nos microfones. Além disso a inclusão de pessoas de diversas tribos demonstra a pluralidade do movimento”, afirma.


Representatividade trans em quadra: Meninos Bons de Bola (SP) são a primeira
equipe do país formada por homens transexuais
(Foto: Arquivo MBB)

Uma sigla, muitas letras

Assim como a Parada do Orgulho de São Paulo, os Jogos eram destinados ao público em geral e essa diversidade era percebida dentro e fora de quadra. Se a maioria dos atletas presentes era de homens cis gays, o Meninos Bons de Bola dava o pontapé inicial na representatividade trans em competições inclusivas.

“Para nós (o evento) foi um momento muito importante, ainda não tinha acontecido nenhum torneio assim para equipes LGBTQIA+. Para nós foi muito bom ter participado, só não imaginávamos que haveria eventos assim com tanta frequência depois”, conta Raphael Martins, presidente e fundador da primeira equipe formada por homens trans, nascida em 2016.


Bulls (SP) conquistou o título que marcou o início do boom das competições
esportivas LGBTQIA+ que tomariam o Brasil a partir de 2017 
(Foto: Arquivo Bulls)

Título para a história

Dentro das quatro linhas, Bulls e Natus fizeram a primeira final em torneios LGBTQIA+ do Brasil. No apito final, a equipe de uniforme vermelho e preto levantou o primeiro título de um movimento que viria a ter milhares de campeões dentro e fora das quadras e campos, partindo do princípio segundo o qual cada competição e cada evento é uma conquista de todos os envolvidos.

“Foi uma sensação maravilhosa. Tivemos um final de semana de entrevistas e fomos campeões. Saiu matéria nossa em jornal local, fomos convidados para dar entrevista na maior rádio de São Paulo... ali caiu a ficha que o futebol LGBTQIA+ estava sendo representado e as pessoas começaram a ver que gay joga bola sim e que não iríamos parar por ali”, relembra Mauricio Lima, presidente do Bulls, que acompanhou de perto a conquista.


Telejornal local SPTV primeira edição contou com entrada ao vivo
durante os jogos de voleibol do evento (Reprodução: GloboPlay)

Close certo

As entrevistas mencionadas por Maurício não foram algo isolado. Os jogadores não imaginavam que, à beira da quadra, estariam jornalistas que conheciam apenas da televisão. O telejornal local SPTV primeira edição fez uma entrada ao vivo durante as partidas de vôlei. Caco Barcellos aguardava a final do futsal para seus últimos registros para o Profissão Repórter, enquanto Gabriela Moreira, ainda pela ESPN Brasil – hoje repórter e apresentadora do SporTV –, entrevistava integrantes das equipes para o canal por assinatura e o blog que mantinha no site da emissora (confira links no fim da matéria).

“Naquela época o time estava mais se divertindo e competindo do que militando. Não estávamos acostumados a ser assunto de interesse da mídia, então participamos das entrevistas sem imaginar que aquele evento teria tanta repercussão, inclusive na sociedade. Muitos jornalistas estavam lá com interesse em documentar o evento, isso chamou muito a nossa atenção”, conta o zagueiro do Natus Alexandre Antoniazzi.


Caco Barcellos entrevista atletas das equipes finalistas do torneio de futsal
após a decisão para o Profissão Repórter 
(Reprodução: GloboPlay)

Esse interesse, no entanto, não é uma constante, como lembra o atacante Felipe Flor. “É algo rotineiro quando estamos no mês da diversidade (junho, mês do orgulho LGBTQIA+), nos demais meses não percebemos tanta procura da imprensa”. Isso só mudou com o aumento da frequência de realização de torneios entre equipes inclusivas, mas isso é assunto para uma outra matéria, na qual você confere a opinião de Gabriela Moreira sobre a atenção dada pela imprensa ao esporte inclusivo.

A cobertura de veículos de comunicação foi bem avaliada por Erico, que também relembra ter vetado propostas com viés de humor. “O saldo de mídia foi muito positivo, conseguimos entrar ao vivo em jornais da Globo em uma época em que as mídias sociais não estavam tão em evidência como agora, mas eu pessoalmente barrei quem queria se aproveitar do evento para fazer chacota, como o Pânico na TV e o Danilo Gentilli, de modo a proteger a imagem dos participantes de algo que era totalmente contra nossos princípios de enfrentamento à LGBTfobia.”


Gabriela Moreira no complexo do Ibirapuera para gravação
do especial Futebol Fora do Armário (Reprodução: YouTube)

Mergulho em um novo universo

O estilo de Gabriela Moreira, no entanto, estava alinhado com os valores que o Comitê Desportivo LGBT buscava transmitir com o evento e que as equipes disseminavam simplesmente por entrar em quadra. Frequentemente envolvida em reportagens em que a informação e os números frios cedem espaço a uma abordagem mais humana e propõem reflexão em termos sociais, a então repórter da ESPN Brasil havia sido apresentada às equipes LGBTQIA+ durante a preparação do especial Futebol Fora do Armário (confira links no fim da matéria) e mergulhou em um universo que a surpreendeu.

“A ESPN segue diretrizes da Disney, que tem um núcleo para pautas de diversidade e gênero. Seguimos essa mesma estrutura na época aqui na ESPN Brasil com o mesmo objetivo de difundir e discutir essas questões, ligando nosso radar para buscar assuntos para abordar em matérias. Foi uma grande e grata surpresa durante a apuração para esse especial ver que havia tantos times que dava para montar um campeonato. Foi muito legal ver a organização das equipes e poder acompanhar aquele momento”, conta Gabriela.


Terceira parte do especial Futebol Fora do Armário,
que foi ao ar pela ESPN Brasil (Reprodução: YouTube)

Durante a produção realizada em São Paulo e no Rio de Janeiro, ela foi apresentada a histórias que ficaram em sua memória. “Um menino do BeesCats que jogava peladas com colegas de trabalho e nunca tinha declarado sua homossexualidade nesse ambiente se sentiu tão acolhido a partir de quando começou a praticar futebol com o time, que decidiu se assumir para os colegas. Também me chamou a atenção um atleta do Bulls que, antes de entrar para o time, sofria com depressão e não se sentia pertencido ao grupo com que jogava e, a partir do momento que começou a fazer parte do Bulls, melhorou da depressão e progrediu em vários aspectos da vida”, relembra a jornalista.

André Bugrinne foi um dos entrevistados por Gabriela para o especial Futebol Fora do Armário, durante visita da repórter e apresentadora a um dos encontros do BeesCats, já de volta ao Rio de Janeiro depois dos Jogos da Diversidade.

“Eu sempre fui fã da Gabi. Ela, assim como eu, é flamenguista e suas matérias sempre trouxeram uma reflexão para a sociedade por meio do esporte. Além disso, o modo com que aborda a temática da inclusão nos passou muita confiança, fazendo dela uma pessoa muito significativa na história do BeesCats. Sua forma de abordar os mais diversos assuntos evidencia a grande profissional que é”.

Gabriela Moreira em encontro do BeesCats, no Rio, logo
após os Jogos da Diversidade (Fotos: Arquivo BeesCats) 

A partir do que acompanhou nos Jogos naquela tarde de junho e também em visitas a treinos como o do Unicorns (SP) e do BeesCats (RJ) - ela visitou o grupo carioca logo na semana seguinte ao evento -, Gabriela avalia a impressão que teve das equipes esportivas inclusivas.

“Não importa a orientação sexual, o futebol é praticado por todo mundo, cada um com seu nível técnico, e tem espaço para todos. Saí dessa cobertura muito convicta de como é importante ter espaços onde cada um tem liberdade de ser quem é e continuar a prática esportiva. Vi também que o futebol inclusivo é muito mais respeitoso em relação aos diferentes níveis técnicos dos atletas. Essas equipes acolhem todas as liberdades. Isso é o esporte sendo exercido em sua essência", analisa.

NO PRÓXIMO POST…

Os primeiros passos das equipes precursoras da representatividade LGBTQIA+ no Brasil: Real Centro (São Paulo/SP, 1990), Magia (Porto Alegre/RS, 2005), Barcemonas (Ananindeua/PA, 2010) e BallCat’s (Manaus/AM, 2014). A formação desses grupos, a primeira competição inclusiva da qual participaram e a perspectiva do pesquisador Wagner Xavier de Camargo do ponto de vista das ciências humanas e sociais do acolhimento e pertencimento promovidos pelas equipes LGBTQIA+.

Confira vídeos que registram como foi o evento:

Matéria no SPTV: https://globoplay.globo.com/v/5946463/

Reportagem no Profissão Repórter: https://globoplay.globo.com/v/6052063/programa/?s=0s

Matéria no blog da Gabriela Moreira no site da ESPN: http://files.espn.com.br/blogs/gabrielamoreira/704283_sem-apoio-de-doria-jogos-lgbt-reunem-400-atletas-no-ibirapuera

Vídeo do evento publicado no canal oficial da APOGLBTSP, ONG responsável pela Parada do Orgulho LGBT de São Paulo: https://www.youtube.com/watch?v=BUEdZLsvYAs

Especial ESPN Futebol Fora do Armário parte 1:

https://www.youtube.com/watch?v=E701OZoQJR0

Especial ESPN Futebol Fora do Armário parte 2:

https://www.youtube.com/watch?v=Be3hN2UGmnY

Especial ESPN Futebol Fora do Armário parte 3:

https://www.youtube.com/watch?v=NAhUGIzJVrk


A bola do lado de fora do armário

Primeira Champions LiGay, um marco na história do esporte LGBTQIA+ (Foto: Arquivo LiGay) Em 2017 eu certamente tinha a mente bem mais fechad...