segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Homenagem concretizada em representatividade

                            
Grupo do Magia (RS) em 2013, na quadra onde os encontros aconteciam:
e
quipe começou a ser formada ainda no futsal (Foto: Arquivo Magia)

Depois de conhecer o pioneirismo do Real Centro (SP) em reunir gays fãs de futebol para encontros semanais para praticar o esporte que amam num ambiente seguro e livre de qualquer preconceito, nossa viagem no tempo segue para o sul do Brasil, 15 anos depois da primeira pelada dos pioneiros da inclusão no Ibirapuera.

Porto Alegre (RS), março de 2005


O pontapé inicial para a formação do
Magia (RS) foi dado em um bar de
Porto Alegre (Foto: Arquivo Magia)


Quem disse que a combinação bar + futebol não vale para as pessoas LGBQIAPN+? Se para a equipe paulista as peladas sempre terminavam em bebida e resenha, foi em um desses estabelecimentos que um grupo de amigos na capital gaúcha teve, no começo de 2005, a ideia de se juntar para bater bola. “A galera estava num bar, começaram a falar de futebol e pilharam a ideia de jogar. Marcaram em uma quadra de futsal em um colégio de freiras, onde os encontros aconteceram durante muito tempo”, conta Carlos Renan Evaldt.

O início nas quadras não impediu que o time que viria a se tornar o Magia Sport Club (RS) se adaptasse ao futebol 7 que viria a consagrar o movimento nacional de equipes LGBTQIAPN+ de futebol. O mergulho de fato nessa empreitada aconteceria em meados de 2017, quando souberam da realização da primeira edição da Champions LiGay, mas a decisão de oficializar a criação de uma equipe propriamente dita aconteceu meses antes, a partir de uma situação que marcou os integrantes.

“Em fevereiro de 2017 tivemos uma grande perda no time. O Junior, que organizava os encontros e incentivava o pessoal a comparecer, foi acometido por uma doença rara e faleceu em questão de três semanas. Antes da despedida dele fizemos uma oração em quadra e nos questionamos se pararíamos ou continuaríamos com a equipe. Decidimos continuar até mesmo como homenagem a ele”, relembra Renan, que assumiu naquela ocasião a organização do grupo como equipe de fato.


Equipe do Magia em dia de pelada em 2016, ainda com Junior
(de amarelo, mais à direita), em homenagem a quem o grupo decidiu
oficializar a criação da equipe (Foto: Arquivo Magia)

O passo seguinte foi a escolha das cores, que não poderia ter sido mais democrática em um estado que é cenário de uma das maiores rivalidades do país: o azul do Grêmio combinado com o vermelho do clube para o qual Renan torce, o Internacional. A encomenda do primeiro uniforme, em março de 2017, pavimentava o caminho para o pioneirismo na região, que também se estendeu para outros esportes que o Magia abriu ao público, como o vôlei, o handebol e o jiu-jitsu.

Antes disso tudo, uma nova homenagem ganhou contornos concretos no escudo do clube. Partindo do princípio segundo o qual estrelas em escudos representam títulos conquistados, muitos poderiam se perguntar o motivo de uma ter sido inserida no escudo de uma equipe recém-criada. Renan explica:

“Quando fizemos o nosso escudo, colocamos uma estrela que representa o Junior e todo o esforço que ele fez lá no início para manter viva a essência do Magia, então a estrela que temos é uma homenagem a ele e também a outras pessoas que fizeram parte da nossa história e, mesmo não estando mais conosco no time, seguem em nossos corações”, conta o atual presidente.

Expansão impulsionada pelas redes

Levando em consideração que só em 2010 nasceria a próxima equipe com propósito inclusivo, seriam mais cinco anos apenas com dois grupos em ação pela representatividade LGBTQIAPN+ no cenário do futebol. Só a partir da oficialização do Magia, no entanto, foi possível estabelecer o contato com outros times, como uma grande rede de inclusão e diversidade no esporte. As redes sociais foram, na opinião de Renan, o fator decisivo para esse alcance.

“A gente vivia numa ‘ilha’ aqui no Sul, não sabíamos da existência de outras equipes e não tínhamos a noção da importância disso tudo até 2017. As redes sociais proporcionaram esse contato com as equipes do restante do Brasil, sobretudo de Rio e São Paulo. O motivo desse hiato foi a falta de contato e de informação”, destaca, acrescentando que a Prefeitura de Porto Alegre chegou a promover um evento que reuniu equipes com a mesma proposta, mas que não foram à frente.


Primeira edição da Champions LiGay, no Rio, em 2017, foi
um divisor de águas para o Magia se considerar parte de um movimento
nacional de diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Uma vez iniciado esse contato interestadual, o Magia confirmou a participação na primeira edição da Champions LiGay, no Rio de Janeiro. A competição firmaria o futebol 7 society como o terreno padrão das competições entre equipes com propósito inclusivo, levando os gaúchos a trocar as quadras de futsal pelos gramados sintéticos, algo novo para 90% da equipe, segundo o dirigente. Finalmente se abriam para a mais nova equipe esportiva LGBTIAPN+ as cortinas de um movimento que já ganhava contornos nacionais, com o aparecimento de focos em diferentes estados.

“Ninguém na nossa ‘bolha’ tinha dimensão do que era o esporte LGBTQIAPN+ até 2017. Aquele ano foi um divisor de águas para nós, que não pensávamos em disputar nada porque sabíamos que não seríamos bem-vindos entre as equipes ‘tradicionais’. Depois da primeira LiGay, no Rio, fomos descobrindo todo um universo. Soubemos que existem equipes inclusivas na Europa e nos Estados Unidos e também que é realizada uma ‘olímpiada’ (os Gay Games). A descoberta de que não estávamos sós no esporte e que podíamos disputar um campeonato sem ser hostilizados foi uma sensação maravilhosa”, desabafa.

A possibilidade de furar essa bolha e fazer contato com grupos esportivos com proposta inclusiva de outros estados foi proporcionada pelas redes sociais. Wagner Xavier de Camargo, pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, analisa a contribuição dessas ferramentas para o crescimento do movimento.

“Virou uma febre isso de mostrar que ‘sim, nós podemos jogar futebol’, o que é muito positivo. As redes sociais são um elemento fundamental, sem elas isso não teria acontecido. Houve grupos de diferentes modalidades em diversos lugares, mas nunca como um movimento sistematizado, talvez pela falta de divulgação. As redes foram um fator importantíssimo para esse crescimento, até mesmo pelo fator motivação de ver que outros estão fazendo”, conta o pesquisador, que encontrou, nos Gay Games 2006, em Chicago, atletas do Rio de Janeiro jogando voleibol juntos.


Futebol feminino é mais uma das vias pelas quais o Magia milita no cenário
da inclusão e da diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Conservadorismo: retrocesso e combustível ao movimento

Para Renan, comparar o cenário da inclusão no esporte entre o ano de fundação do Magia e a luta que as equipes enfrentam hoje torna inevitável envolver o fator político e a onda de conservadorismo incitada por Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência em 2018.

“Em 2005 acredito que o cenário infelizmente era melhor que hoje, já que a conjuntura política era muito mais favorável ao LGBT+. Com a chegada desse governo de direita e os ‘incentivos’ do presidente, as pessoas se sentiram mais livres e mais à vontade para agredir, ofender e agir de forma LGBTfóbica. Não que em 2005 o cenário fosse bom, mas hoje vivemos algo pior. Chegávamos para jogar e recebíamos olhares de desconfiança, tipo ‘o que vocês estão fazendo aqui?’, mas acredito que houve um retrocesso grande na questão da aceitação”, analisa o presidente do Magia.

Na opinião de Wagner Xavier, o boom do surgimento de equipes inclusivas entre 2015 e 2017 se ancorou no fato de o conservadorismo ainda não ter avançado naqueles anos como a partir das últimas eleições presidenciais. Por outro lado, segundo o pesquisador, o crescimento da direita também fortalece a vontade das pessoas LGBTQIAPN+ de lutar por seus direitos, inclusive no esporte.

“Além do contato proporcionado pelas redes sociais, também se tinha (até 2017) um recrudescimento de valores conservadores e, com isso, se tem ganhos sociais em todas as esferas, inclusive no esporte. (De 2018 para cá) temos vivido esses tempos sombrios de conservadorismo e uma reação a isso, tanto na sociedade quanto no esporte, é mostrar que as pessoas LGBTQIAPN+ podem praticar esporte. Esse movimento (da diversidade no esporte) é irreversível e tem um lastro de desenvolvimento bastante pronunciado nos próximos anos, principalmente com o fim da pandemia”.

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