De azul e amarelo, Real Centro (SP) participa de torneio
entre equipes LGBTQIA+, algo impensável na década de 1990,
quando a equipe se formou (Foto: Arquivo Real Centro)
Se fosse
possível estabelecer um marco inicial no esporte LGBTQIA+ no
Brasil em termos de integração de equipes, sobretudo no contexto do futebol, 2017 seria esse divisor de águas.
Naquele ano, mais especificamente entre junho e julho, os Jogos da Diversidade
– que você conferiu nas postagens anteriores aqui no blog – e a primeira edição
da Taça Hornet da Diversidade – que você vai ver logo, logo em nova matéria – proporcionaram
o início de um movimento que viu nascerem dezenas de agrupamentos esportivos
LGBTQIA+ Brasil afora.
Isso não
significa, no entanto, que outras equipes já reunissem pessoas com o propósito
de inclusão e diversidade. Ainda sem uma estrutura que os unificasse em uma só causa, grupos LGBTQIA+ já praticavam o esporte mais popular do país e
proporcionavam a seus integrantes espaços de lazer, sociabilidade e prática da
modalidade sem o risco de sofrer o preconceito ao qual estariam sujeitos em
outras circunstâncias.
São Paulo (SP), março de 1990
Em 1990 muitos
dos atuais protagonistas da onda inclusiva promovida pela LiGay Nacional de
Futebol e pela popularização dos Gay Games por aqui ainda eram crianças e
outros sequer eram nascidos. Era um ano simbólico: em março a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirava a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde
(CID).
Em uma viagem pelo túnel do tempo, o mesmo Ibirapuera que recebeu os Jogos da Diversidade 27 anos depois passou a ser frequentado por um pequeno grupo de amigos, que se reuniam aos domingos para jogar bola. Ao fim das partidas, a cerveja e a resenha eram garantidas em bares frequentados por gays e simpatizantes no centro da capital paulista, onde convidavam aqueles que se viriam a se tornar novos membros. O fato de muitos dos integrantes participarem de times pelos quais disputavam torneios amadores levou os amigos à decisão de participar de competições. Nascia, ainda sem essa denominação de forma oficial, a primeira equipe inclusiva do Brasil, o Real Centro (SP).
“Àquela altura, não sabiam que nosso time era formado por gays. Não deixávamos transparecer por conta do preconceito, que era muito grande nos anos 90 e continua sendo até hoje. Todo jogo tinha a seriedade que é vista no futebol “hetero”. Já houve brigas entre jogadores, mas tudo se resolvia no campo, na quadra. Saíamos sempre das partidas para os bares do centro ou para a casa de algum dos jogadores. Lá sim dávamos pinta e close, fazíamos a festa, no bom sentido”, relembra Gil Lima, membro da diretoria do Real mais ligado à parte social da equipe, que cuida da organização de eventos e festas.
Em 1992, a equipe do Real Centro (SP) foi ao Rio de Janeiro para disputar
competição que teve entre os árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, o popular
Margarida, primeiro árbitro assumidamente homossexual, falecido três anos depois
em decorrência de sequelas da AIDS (Foto: Arquivo Real Centro)
Cenário segregacionista como pano de fundo
Pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, o pesquisador Wagner Xavier de Camargo, traça um panorama da visão da época sobre a pessoa LGBTQIAP+ para ajudar na compreensão do cenário encontrado pelos representantes do Real quando da formação do grupo.
“A
homossexualidade tinha acabado de sair da classificação de doença mental.
Vivíamos o boom da contaminação pelo vírus HIV. Havia um preconceito social de
que a AIDS era uma ‘peste gay’. Os espaços de entretenimento então GLS eram
segregacionistas, exclusivistas, onde pessoas eram muitas vezes questionadas
sobre sua identidade de gênero e orientação sexual”, relembra.
Comparando o
que aqueles rapazes encontraram com o momento atual, de surgimento em larga
escala de equipes com proposta inclusiva, Wagner é taxativo: “o momento em que o
Real surge era muito peculiar, nada parecido com o que é hoje em dia. Havia
preconceito na sociedade e claramente no esporte, como ainda há hoje, mas era
de uma natureza mais perniciosa”.
da equipe, em constante renovação (Foto: Arquivo Real Centro)
Integração e mistura de gerações
A primeira
participação da equipe em uma edição da Champions LiGay, em 2019, foi a maior
evidência de que, encorajado pela expansão do movimento, o Real Centro estava
definitivamente integrado à causa. “Quando eles vêm a público e se assumem como
equipe que acolhe a diversidade, vejo aí uma busca por recontar um pouco de sua
história, da proposta inclusiva numa realidade muito mais dura para o
acolhimento dessas identidades e orientações, ao mesmo tempo em que se colocam
numa vanguarda por terem tradição nisso, mostrando uma capacidade de releitura
de si própria e uma nova proposta de trabalho a partir de dentro”, completa o
pesquisador.
O posicionamento como equipe assumidamente LGBTQIA+ atraiu jovens como Eduardo Oliveira, então aos 20 anos de idade, às vésperas da Champions LiGay de Belo Horizonte, em 2019. “Me assumi cedo e estava procurando uma equipe assim. Parei de jogar bola com heteros por conta das piadinhas que ouvia. Fui muito bem recebido pelo Real e gostei muito de conhecer a história deles”, conta o zagueiro, hoje com 22 anos.
Um dos representantes da nova geração do Real Centro, Eduardo valoriza o aprendizado que tem no convívio com amigos que participaram dos primeiros anos da equipe azul e amarela. “Acho muito enriquecedora essa troca de vivências entre gerações. Eles enfrentaram muitas coisas nessa saída do armário. É muito importante a história que eles passam para a gente, que, ao se assumir em um tempo diferente, talvez pode não ligar para muita coisa. Eles passaram por uma luta grande lá atrás”, complementa.
Eduardo (em primeiro plano) deixou de se sentir à vontade em peladas devido
ao preconceito e integrou a equipe do Real (Foto: Arquivo pessoal do atleta)
Wagner Xavier vê como algo raro essa convivência entre gerações diferentes e uma “passagem de bastão” no contexto das equipes esportivas, mas acredita que seria necessária uma abordagem ampla para a compreensão mais específica dessas trocas.
“A geração
mais nova é a chamada geração ‘do lacre’, já chega exigindo seus direitos, enquanto
as mais antigas experimentaram primeiro o armário, a negação, depois o momento
da saída do armário, a homofobia da sociedade, da própria família… muitos dos representantes
dessa nova geração sequer sabem o que é viver dentro do armário, mas é algo que
não se pode generalizar”, finaliza.
NO PRÓXIMO POST...
Acende em Porto Alegre a centelha da inclusão e da diversidade no contexto do esporte, com a formação do Magia (RS), em 2005. Era o segundo foco de um movimento que seguiria para a região Norte do país e viria a ganhar contornos nacionais.
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