segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Reencontro para o handebol


Alligaytors reúne experiência no cenário do handebol para conquistar
o título da Rio Pride Cup 2021 (Crédito: @mpfotografiaesportiva)

Se existe uma palavra que pareceu permear as conversas com representantes das quatro equipes participantes da Rio Pride Cup de Handebol 2021, essa palavra foi “reencontro”. Foi esse o tom da competição que voltou a agitar o calendário da modalidade entre equipes LGBTQIAPN+ depois de quase dois anos de paralisações das atividades em decorrência da pandemia.

Foi o primeiro torneio inclusivo de handebol desde a Queer Cup, que teve edições realizadas em Curitiba – em 2018, com vitória do Vale (GO) – e Porto Alegre – em 2019, conquistada pelo Capivara (PR). A terceira seria sediada pelo Fadas (SP), mas precisou ser adiada em face do cenário no qual o mundo mergulhou em 2020. Na Arena 3 do Parque Olímpico do Rio, uma final carioca decidiu o título, que ficou com o Alligaytors.

Recheada de atletas experientes no cenário da modalidade, a equipe venceu na decisão do troféu o Lendários, equipe organizadora do torneio, que contou ainda com parceria com a Impulse Rio para conscientização sobre a prevenção do HIV e outras ISTs por meio de quiz e esclarecimentos aos participantes do evento.

Enfim, de volta

Definir o momento certo para retomar as atividades não foi tarefa fácil, como conta Alê Magalhães, integrante do Bharbixas (MG) desde 2018 e atual líder da modalidade no clube, cujas atividades – vôlei, handebol e dance – retornaram cada uma a seu passo. O handebol, por exemplo, voltou à ativa no mesmo mês do torneio.


Bharbixas repensou o retorno de suas atividades, mas já voltou com as três
modalidades: handebol, vôlei e dance (Crédito: @mpfotografiaesportiva)

“Nosso time teve uma discordância de ideias nesse retorno, mas sempre prezamos pela saúde de todos. Em momento algum quisemos voltar antes de qualquer orientação sanitária em relação a isso. Voltamos só em novembro depois de uma pesquisa a respeito da vacinação de todos e se se sentiam seguros para voltar. Temos atletas que moram com pessoas de grupos de risco e com comorbidades. O retorno seguiu nossa filosofia: saúde e respeito em primeiro lugar, com a competitividade como consequência desse nosso empenho. Custou a acontecer, mas viemos tendo resultados”, conta Alê.

Para Bruno Gerlin, um dos gestores do Fadas e que participou da fundação do time, o tempo afastado das quadras é um motivo para que ninguém se exigisse um desempenho em alto nível: “É um recomeço para todos. Não podemos nos cobrar em termos de qualidade técnica, desempenho. O importante é todo mundo estar junto de novo. O que está acontecendo aqui hoje é prova de que sobrevivemos nós e o movimento”.

Golaço da representatividade

O engajamento do Fadas em causas sociais em apoio a ONGs voltadas para a promoção de cidadania de pessoas LGBTQIAPN+ chamou a atenção da maior entidade da modalidade no país, levando o presidente da Confederação Brasileira de Handebol, Felipe Casão, a convidar Bruno e Lucas Paioli, também dirigente da equipe paulista, a integrar o Comitê de Diversidade na CBHb, criado em julho. Hoje eles são respectivamente diretor e coordenador geral do Comitê, que conta ainda com uma coordenadora esportiva: Aline Pará, atleta olímpica aposentada.


Fadas levou duas equipes ao Rio para a disputa da competição
(Crédito: @mpfotografiaesportiva)

“O comitê nasceu com a função de ter membros de preferência de todas as letras da sigla, para que cada um traga sua dor e seu lugar de fala. Não podemos ter a expectativa de mudar o mundo, mas queremos trazer respeito e acolhimento para o espaço esportivo do handebol, porque é a bola que a gente segura. O próximo passo é criar essa consciência sobre a necessidade do respeito e acolhimento a atletas LGBT+, para desenvolvermos um mapa de ações positivas para realizar ações mais palpáveis”, conta Bruno, que reforça que já estão sendo analisados documentos como código de ética e estatuto, por exemplo, além de uma aproximação das temáticas de pessoas com deficiência para trazer ações referentes a PCD para dentro do Comitê da Diversidade.

A organização do evento ficou por conta de Eduardo Bianchi, integrante do Lendários, que contou com apoio do poder público por meio da Coordenadoria Especial de Diversidade Sexual e da Secretaria Municipal de Esportes, por exemplo, para a liberação da arena do Parque Olímpico do Rio de Janeiro. Segundo ele, que coordena a modalidade no Lendários e também é responsável pelo marketing de sua equipe, a intenção é expandir nos próximos anos para outras modalidades, inclusive a partir do crescimento observado nas equipes esportivas LGBTQIAPN+ em diversos esportes.

“É muito legal vermos o esporte LGBT+ ganhando territórios, se expandindo. Esperamos que essa proposta se espalhe cada vez mais, que toda cidade tenha sua equipe pra disputar competições internas, regionais, nacionais. Quando chegarmos a esse ponto, vamos precisar de uma infraestrutura bem legal para dar a esses eventos um alcance muito maior”, avalia o organizador, que vê na capital carioca um grande polo para a realização de eventos com propósito inclusivo muito além do esporte. “O Rio tem um potencial muito grande para a economia criativa e o esporte LGBT+, na verdade a cultura LGBT+ de um modo geral pode explorar isso para se beneficiar politicamente, ganhar visibilidade e mostrar que o Rio é um lugar aberto, receptivo para todos virem.”


Equipe organizadora da competição, Lendários avançou até a final
(Crédito: @mpfotografiaesportiva)

Poder feminino em ação

Chamavam a atenção na equipe do Fadas duas goleiras, Luciana Faria e Raphaela Calandra, as únicas mulheres na equipe e que, junto com a também goleira Carol Carvalho, do Lendários, representavam dentro de quadra a força feminina, também presente à beira das quatro linhas com treinadoras, à exceção da equipe do Alligaytors (RJ). Chamava mais ainda a atenção a vibração de Raphaela Calandra ao comemorar cada defesa por sua equipe. Há seis meses no Fadas, ela explica o motivo de tanta garra:

“Me sinto dentro de uma família que me acolheu. É diferente dos vários times formados por mulheres heterossexuais em que joguei. O Fadas me acolheu do jeito que sou, sem nenhum estereótipo ou crítica quanto à minha orientação sexual”, conta Raphaela, que  se denomina bissexual. “Só de chegar toda 4ª feira, me anima, saber que vou sair do trabalho cansada, exausta, mas vou chegar e encontrar todas as pessoas que amo e vou chegar em casa bem e tranquila. Isso que explica essa vibração toda em quadra”, completa, reforçando que o Fadas busca a construção de um time feminino.


Raphaela (agachada, de laranja) atribui sua vibração em quadra ao acolhimento
que recebeu da equipe do Fadas (Crédito: @mpfotografiaesportiva)


sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Cores que dão vida às pistas

Jerry da Costa faturou 7 das 24 medalhas
conquistadas pela delegação brasileira
nos X Gay Games Paris 2018
(Foto: Arquivo pessoal)

Nas primeiras matérias deste blog você acompanhou a cronologia do surgimento das equipes de futebol precursoras do movimento do esporte LGBTQIAPN+ em nosso país. Chegou a hora de passear por outras modalidades e conhecer representantes da luta por mais inclusão e diversidade no atletismo, vôlei, handebol, esgrima, remo, natação, ciclismo, artes marciais e muitos outros esportes em que guerreirxs demonstram que podemos sim competir em alto nível e tornar o esporte cada vez mais democrático e igualitário.

Chamado precoce

No dia 10 de agosto de 2018, o Brasil “sextava” com medalhas em Paris: mais um ouro e uma prata eram somados às conquistas do já multipremiado Atletismo na edição dos Gay Games - evento considerado a olimpíada LGBT+ - realizada naquele ano na capital francesa. No pódio estava o catarinense Jerry da Costa, natural da cidade de Blumenau.

Adepto da numismática e da filatelia – termos que assustam pelo rebuscamento, mas se referem, respectivamente, ao estudo das medalhas e moedas e ao dos selos e materiais postais – voltadas à temática olímpica, o colecionador sentia as premiações conquistadas nos Jogos pesarem cada vez mais em seu pescoço com o passar dos dias de evento, mas a sequência de pódios escrevia páginas de uma história iniciada quando ele tinha apenas oito anos de idade.

O despertar para a modalidade aconteceu nas aulas de educação física na escola, uma instância essencial para se promover os valores necessários à aceitação das diferenças e coibir práticas discriminatórias e segregacionistas. Essa fase de formação representa para atletas de várias gerações um momento simbólico do início de sua paixão pelo esporte, mas, ao mesmo tempo, deixa em muitas pessoas marcas da segregação pelo fato de se considerar algumas modalidades “próprias para meninos” e outras “para meninas”.

À esquerda, Jerry conquista o ouro na prova dos 100m no Campeonato
da Indústria; à direita, ajuda sua equipe a vencer o revezamento 4x100
no Campeonato Paulista Master (Montagem: Arquivo pessoal)

Para Jerry as memórias desse início de contato com o esporte são de um verdadeiro chamado para seu futuro: “lembro-me como se fosse hoje a professora anunciando que haveria uma competição de Atletismo do primário (atual Fundamental I). Perguntei o que era isso e ela respondeu prontamente: “correr, saltar e pular”, relembra, em entrevista ao blog.

Era uma definição própria para crianças daquela idade, mas que lhe abriria as portas da modalidade. Topando de imediato participar da prova, pensando “é isso que eu quero!”, como nos conta, o menino sequer imaginava se tornar, quatro anos depois, campeão e recordista catarinense mirim, considerada a primeira faixa etária do atletismo, atual sub-15.

“A Educação Física escolar é uma maravilhosa ferramenta para a construção de vários valores que o ser humano precisa aprender para sua formação e o esporte escolar vem justamente para somar dessa forma”, reforça o catarinense, consciente do papel de professores e treinadores diante de crianças e adolescentes durante o Ensino Fundamental e Médio.

Desvio de percurso em um destino traçado

A estreia consolidou o interesse de Jerry pela modalidade. Duas semanas depois, a mesma professora o levou junto com outras crianças para participar de uma das maiores competições de Blumenau e de todo o estado, os Jogos Estudantis da Primavera, que tiveram início na própria década de 70 e são até hoje um dos momentos marcantes do esporte local, chegando a reunir 10 mil estudantes das redes municipal, estadual, federal e particular de ensino.

Jerry começou sua trajetória nas pistas
começou ainda na infância, aos oito
anos de idade (Foto: Arquivo pessoal)

Os bons resultados nos Jogos fizeram com que o menino procurasse um local para treinar, mas sua professora não soube, à época, indicar um espaço próprio para que ele desenvolvesse suas técnicas. Coube a ele mesmo buscar uma solução: “como fui sempre muito hiperativo quando criança, lembrei que poderia ter algo onde foram realizados os Jogos Estudantis e fui andando até o local a pé, um percurso de 5km para ir e voltar”.

Chegando ao local, se deparou com um ginásio onde muitos meninos praticavam Ginástica Olímpica – atual Ginástica Artística –, cujo professor o convidou para treinar. “Foram seis meses de tortura, doía tudo”, brinca. “Decidido a parar, um dia falei para mim mesmo que seria meu último dia. Para minha surpresa, ao sair do ginásio, vi outro professor, que trabalhava na escolinha de Atletismo da Prefeitura”. Seria essa sua nova casa.

O garoto começava ali a pavimentar seu caminho no Atletismo de alto rendimento, vindo a participar de competições municipais, estaduais, nacionais e internacionais, que lhe renderam nessa primeira fase de sua carreira 19 títulos estaduais, 3 sul-brasileiros e 4 nacionais, além de 33 recordes estaduais e torneios universitários. Decidiu, em 1994, dar uma pausa na carreira de atleta para se dedicar aos estudos, período no qual concluiu suas graduações e pós-graduações, mas que o colocou diante de uma barreira muito maior que as encontradas por ele nas pistas: a depressão.

O retorno em 2015 não se deveu apenas ao amor que tem pelo esporte, mas também a um motivo de saúde. Voltar a fazer o que mais amava havia se tornado urgente. “Voltei por recomendação de minha médica, que me perguntou, durante uma sessão, o que eu mais gostava de fazer. A resposta era clara: Atletismo. Por isso, ela me recomendou voltar como lazer, mas meu instinto é competitivo, então logo voltei às competições no cenário nacional e internacional”.

Bandeira levantada nas pistas

Um momento importante da carreira de Jerry foi retratado nas primeiras linhas dessa matéria. A medalha de ouro no salto triplo e a prata na marcha atlética 5.000m que ele conquistou naquela sexta-feira de agosto em Paris coroaram uma participação brilhante, com 7 pódios: além da dourada, foram 5 medalhas de prata (na prova mencionada acima e também no lançamento de dardo, salto com vara, decatlo e 110m com barreiras) e um bronze no arremesso de peso. Tudo isso fez do catarinense responsável por cerca de 1/3 das medalhas trazidas pela delegação Espírito Brasil. Ser um dos representantes do nosso país na capital francesa fez com que Jerry portasse uma bandeira pela inclusão e representatividade, sobretudo dentro de sua modalidade, na qual, segundo ele, não era fácil identificar uma pessoa LGBTQIAPN+:

Os X Gay Games foram um marco
na luta de Jerry pela diversidade no
Atletismo (Foto: Arquivo Pessoal)

“O Atletismo sempre foi um ambiente extremamente masculino e, pelo esforço, concentração e dedicação que exige, sempre foi difícil definir especificamente um perfil de atleta LGBT+ como é atualmente. Entendo que foi um processo natural de amadurecimento em função de muitos obstáculos superados como a ditadura, AIDS, homofobia e muito machismo e preconceito".

Reforçando a consciência do papel que assume no esporte para tantos jovens LGBTQIAPN+, Jerry relembra o caso de Walmes Rangel, primeiro atleta olímpico brasileiro a se assumir gay, ainda nos anos 1990, para explicar como a LGBTfobia o fez levar mais tempo para tornar pública sua defesa da causa.

Rangel teve sua orientação sexual revelada de forma compulsória, sofreu bullying, ameaças e agressões, além de perder patrocínios, precisando encerrar sua carreira em seguida. O catarinense, que atualmente treina em terras paulistanas, confidencia um momento pessoal e profissional que se tornou um ponto de virada no que se refere à sua percepção da própria luta em prol da diversidade no esporte.

“Tive um trabalho que marcou profundamente minha vida. Era um ambiente extremamente tóxico, homofóbico e preconceituoso de todas as formas. Me veio a depressão e, com o desenrolar das coisas, assumi que lutaria no esporte do qual faço parte para mostrar às pessoas e à nossa própria comunidade LGBT+ que nossa orientação sexual nada interfere em nós enquanto seres humanos e nossa luta pode fazer um papel social importantíssimo para o fim de todo preconceito e discriminação”, conta.

Abertura de novos caminhos…

Apesar de reconhecer que, com todas as experiências que viveu e o preconceito latente na sociedade, só pôde realmente contribuir com a causa da diversidade no Atletismo na última década, Jerry se orgulha em ver em diversas modalidades atletas levantando a bandeira de que homofobia é crime. Prova dos novos passos que vêm sendo dados, para ele, foi a formação da primeira delegação brasileira para uma edição dos Gay Games, em 2018.

Ao lado dos companheiros de Atletismo
nos X Gay Games 2018, Fábio Lemes
e Elvira Breda, também medalhistas
em Paris (Foto: Arquivo Pessoal)


“Foi um ponto de partida, com ações que deixaram marcas e fizeram história para as próximas edições e gerações. Esse momento registra o desenvolvimento de um grupo inicial de um movimento de inclusão esportiva LGBT+ no Brasil para lançar um olhar profundo sobre o que o esporte em nosso país realmente precisa para alcançar uma verdadeira inclusão em prol de uma melhor qualidade de vida”, avalia o atleta, para quem o Atletismo abriu, em 2018, portas para um novo cenário em termos de visibilidade da participação de atletas gays.

O resultado no quadro de medalhas mostra que não é para menos: das 24 medalhas conquistadas pelos representantes da delegação Espírito Brasil em Paris, 14 vieram das mais diversas provas de Atletismo – você confere futuramente aqui no blog matérias sobre os demais medalhistas da última edição do evento. Em metade dessas 14 oportunidades a bandeira brasileira subiu ao pódio nas costas de Jerry, que conta ter sido procurado por outros companheiros de modalidade a respeito da edição de Hong Kong, adiada para 2023.

…mas uma longa estrada a percorrer

Jerry acredita em uma fase de captação de novos talentos para o esporte LGBTQIAPN+ do Brasil até os Gay Games de Hong Kong e vê com bons olhos o surgimento de novos praticantes dispostos a representar nosso país no Atletismo no continente asiático em 2023, mas observa com preocupação a falta de apoio para tantos competidores.

“Ainda somos escondidos pela mídia e é uma luta constante para termos um patrocinador que abrace de fato a comunidade. Temos uma enorme quantidade de militantes em todas as áreas, mas não há apoio ao esporte LGBT+ nacional. A mídia pode oferecer muito mais em termos de visibilidade com tantos talentos em nosso país. Sinto que temos ainda um longo caminho a percorrer”, avalia.

Competições internacionais de Atletismo Master
também fazem parte do calendário do
catarinense (Foto: Arquivo Pessoal)

Também faltam, na visão dele, engajamento do poder público junto a atletas que levantem a bandeira da diversidade no esporte por meio de políticas públicas: “o Brasil ainda engatinha se comparados a outros países em termos de políticas de Estado voltadas para o desenvolvimento desses atletas. Há uma profunda falta de visibilidade sobretudo dos esportes individuais, mas creio que com o sucesso da nossa delegação nos X Gay Games 2018, possamos abrir portas para que as marcas possam nos apoiar cada vez mais”.

Nas pistas Brasil afora, Jerry da Costa não coleciona só medalhas. Desde que retornou às competições, já conquistou 68 medalhas de ouro e já quebrou 81 recordes em âmbito estadual (não apenas em seu estado natal e no qual treina, mas também em Pernambuco, no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul), nacional, sul-americano, ibero-americano e em meetings internacionais. Também foi eleito melhor atleta brasileiro e sul-americano em 2019 World Master Athletics e indicado ao prêmio de Melhor Atleta do Mundo pela região sul-americana da entidade.

Recado para as próximas gerações

Quem visita o perfil do atleta no Instagram, por exemplo, percebe, ao rolar o feed, que sua paixão pelas medalhas vai muito além daquelas que ele conquista, mas o multimedalhista dos X Gay Games 2018 deixa aos jovens LGBTQIAPN+ que se inspiram em sua luta e em seu desempenho nas pistas o recado de que começar a prática da modalidade é mais simples do que muitos imaginam:

“Hoje o Atletismo é uma modalidade muito simples de ser praticada em qualquer lugar onde você possa estar. Correr faz parte da cultura do bem-estar e acredito que isso possa trazer um número cada vez maior de adeptos para a modalidade. Não existem barreiras de classe social ou econômica, basta o interesse em cuidar da saúde física e mental”.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Uma nova página para a tradição no Norte

 
Destaque no Peladão de 2013, Júnior Leocádio (ao centro, de chuteiras azuis)
fundou o 
Ball Cat's (AM) no ano seguinte (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Há quem diga que “pelada” é o lado informal do futebol, mas em Manaus, a coisa não é bem assim. O melhor exemplo de que isso é coisa séria é o Campeonato de Peladas do Amazonas, popularmente conhecido como Peladão, o mais longevo torneio amador do mundo, disputado anualmente desde 1973 e realizado sob organização da Rede Calderaro de Comunicação (RCC), gestora da TV local A Crítica.

Diferentemente do esporte profissional, lá não tem pré-requisito: a participação é livre, com direito a categoria feminina, infantil (“Peladinho”), master (a partir de 40 anos) e indígena, reunindo cerca de 20 mil atletas amadores em mais de 500 equipes. Coube a esse evento recheado de história e de significado social o papel de ser o pano de fundo para o maior passo que já foi dado em direção à inclusão e diversidade no futebol do estado.


Levando o Amazonas até na camisa: Ball Cat's é pioneiro na luta por inclusão
e diversidade no futebol no maior estado do país (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Manaus (AM), outubro de 2013


Representatividade de Júnior foi tema de matéria
da revista da Copa do Mundo de 2014, que trazia
destaques culturais e esportivos
 de cada estado
que foi sede do mundial (Foto: Arquivo pessoal)

Pedro Leocádio Neto Júnior era um dos milhares de jogadores participantes, mas o rapaz, conhecido como Pedrita, se diferenciava dos demais não apenas pela qualidade técnica que demonstrava em campo. Assumidamente homossexual, foi muito além da representatividade de mostrar que gay pode jogar bola: ele foi eleito em 2013 jogador-destaque do Peladão e virou manchete na mídia local e nacional. Seu protagonismo chamou a atenção de outros colegas LGBTQIA+, que demonstraram interesse em jogar, despertar esse que o motivou a criar a primeira Copa Gay de Futebol em Manaus.

Essa não foi, no entanto, a única reverberação do destaque alcançado por Junior dentro de campo: já em 2014, curiosamente no mesmo dia em que se comemora o aniversário da capital amazonense – 24 de outubro –, o próprio Pedrita montava a primeira equipe assumidamente gay de futebol do estado com o nome de Ball Cat's, da qual é presidente e atleta.

“O fato de eu ser conhecido e respeitado pela participação em campeonatos, inclusive com essa eleição de destaque no Peladão, trouxe ao time visibilidade e respeito por parte das equipes não LGBTQIA+. Jogamos contra todas em pé de igualdade e já ganhamos várias vezes. Assim vamos aos poucos conquistando nosso espaço e enfrentando o preconceito”, conta Júnior.


Partida do Peladão disputada pelo Ball Cat's no Estádio da Colina,
em 2019, ano da estreia da equipe na competição (Reprodução: Youtube)

O próprio Ball Cat's passou a disputar o Peladão em 2019, ganhando grande visibilidade com a exibiçao pela TV A Crítica de uma partida que disputou no Estádio Ismael Benigno  o Estádio da Colina , que foi, até os anos 70, o palco mais importante do futebol de Manaus. O posto foi perdido apenas com a inauguração do Estádio Vivaldo Lima, o Vivaldão, reconstruído para a Copa do Mundo de 2014 como Arena da Amazônia.

Levando o Amazonas na camisa, o time participou pela primeira vez de uma competição nacional com outras equipes LGBTQIAPN+ na quarta Champions LiGay, em Brasília (DF), estreando na Série de Acesso. Já na edição seguinte do evento, em Belo Horizonte (MG), os manauaras disputaram a divisão principal. Com a reformulação dos critérios de classificação para a principal competição inclusiva do país, eles buscarão na Copa Norte uma vaga para são Paulo em 2022, quando a capital paulista sediará pela segunda o "Brasileirão LGBT+" (anteriormente a cidade já havia recebido a edição do segundo semestre de 2018).


Depois da estreia em Brasília, a equipe voltou à Champions LiGay em Belo Horizonte,
no segundo semestre de 2019 (Reprodução: Instagram LiGay Nacional de Futebol)

Beleza que quebra tabus

A nota 10 no quesito representatividade se estende também para fora das quatro linhas. Toda equipe que se candidata a uma vaga no Peladão precisa apresentar uma rainha para participar de um concurso, sendo essa uma exigência para a participação no torneio, que tem duração estimada em 5 meses. Para o Ball Cat’s não foi o suficiente fazer história sendo a primeira equipe LGBTQIAPN+ no Amazonas e, consequentemente, no evento: logo em sua estreia, inscreveram uma mulher transexual como rainha da equipe.

O sucesso foi além do esperado: Stephany Vilaça conquistou o terceiro lugar dentre 461 candidatas participantes do Rainha do Peladão, competição paralela à disputa dentro dos campos e que premia a vencedora com um carro 0km e uma quantia em dinheiro. “Quebramos um enorme tabu na competição e isso para mim já foi uma enorme vitória não apenas para o time, mas para a comunidade LGBTQIA+ como um todo”, comemora Pedrita.


Stephany Vilaça com o troféu conquistado
na partida de abertura do Peladão 2019
entre as equipes estreantes naquela edição:
Ball Cat's venceu por 4x1 e levou a taça
para casa (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Quem pensa que beleza é o suficiente se engana: as candidatas encaram etapas eliminatórias com diferentes atividades, como entrevista com os organizadores, desfiles com banca de jurados – da qual participaram Adriana Bombom e Monique Evans, por exemplo –, até que sobrem 12 classificadas para um reality show intitulado “A Bordo – O Reality", exibido pela mesma emissora de televisão A Crítica, que promove o Peladão.

A bordo de um iate escoltado pela Marinha Mercante no meio do Rio Negro sem aproximação de qualquer pessoa externa ao concurso, as participantes são monitoradas por câmeras 24h por dia durante 35 dias e cumprem novas atividades eliminatórias, até que as três finalistas participem do concurso de beleza que funciona como etapa final, com voto popular.

Até 2019, Júnior tinha visto Stephany apenas duas vezes em Manaus, uma delas quando a musa se tornou rainha de bateria de uma escola de samba da cidade. Pedrita relembra o dia das inscrições no Peladão de 2019, quando foi oficializá-la como rainha do Ball Cat’s:

“Ela aceitou nosso convite logo no dia anterior à inscrição. Já no dia, chegando ao local, a coordenação do evento estava lotada de jornalistas querendo conhecê-la: tinha surgido na mídia que uma trans concorreria no concurso. O terceiro lugar foi uma conquista, ela só não ganhou porque aqui o pessoal não tem uma mente totalmente aberta para esse movimento, mas estamos trabalhando muito nesse sentido em diferentes modalidades”.


Matéria da TV A Crítica sobre a abertura do Peladão 2019,
que destacou a participação do Ball Cat's (Reprodução: Youtube)

Do Peladão para todo o Brasil

A participação no Rainha do Peladão fez a carreira de Stephany decolar. Na semana anterior à publicação dessa matéria ela foi miss trans da cidade de Lorena, no interior de São Paulo, para onde foi convidada por conta da repercussão que teve no Peladão de 2019. A moça foi a única representante de fora do município a disputar com as trans locais.

Stephany nas arquibancadas da Arena
da Amazônia no dia da abertura da edição
2021 do Peladão (Foto: Arquivo Ball Cat's)
“Minha história com o time é muito marcante para mim. Iniciamos um trabalho que não imaginávamos o quão grandioso se tornaria: primeiro time composto por homens gays a concorrer no Peladão, num esporte tão machista, tendo uma trans para representá-los como rainha. É muito gratificante saber que o esporte e a televisão estão abrindo essa oportunidade para nós, mulheres trans, exercermos essa representatividade. Pude ensinar como as pessoas poderiam nos tratar de verdade, tive uma voz que nunca imaginei ter”, conta Stephany, que passou a ser uma figura pública na capital amazonense, coordenando atualmente as mídias dos grupos de forró de Manaus, além de já ter sido rainha gay do Carnaval da cidade e também a primeira musa e rainha de bateria de escola de samba local.

Dois anos após seu pódio, a musa conta com o apoio de rainhas de edições anteriores para o concurso de 2021, no qual está entre as mais cotadas para vencer. Ela já avançou na primeira eliminatória e está entre as 100 classificadas. Como em todo reality show, polêmicas entre as participantes são normais, mas a rainha do Ball Cat's foi muito bem recebida pelas demais concorrentes, segundo Pedrita:

“Quando ela concorreu não houve nenhum comentário preconceituoso e ela foi muito querida no grupo das finalistas. Essa aceitação é uma grande conquista para nós”, conta o presidente da equipe, ciente de que a popularidade de Stephany já fez com que ela recebesse convite de outras equipes para representá-las como rainha no Peladão, mas o coração dela bate mesmo pela equipe que a projetou para o Amazonas, a região Norte e todo o país.

“Foi uma porta que se abriu trazendo inúmeras outras possibilidades para mim, não tenho palavras para agradecer ao Junior e ao time pela mudança que trouxe para minha vida, com a visibilidade da nossa luta pelas nossas causas”, afirma, já projetando a sequência do concurso atual e também do time no Peladão: ”acredito que em 2021 vamos fazer um trabalho muito melhor do que vínhamos imaginando, foram dois anos de planejamento e preparação para essa nova edição e queremos ir muito mais longe, não apenas pela preparação do time, mas pelo carinho que temos recebido do público. Somos respeitados hoje, nosso time é elogiado pelas equipes adversárias. A gente quer esse respeito pela qualidade do nosso trabalho e por nossa competência”.


Ball Cat's e sua rainha Stephany nas arquibancadas da Arena
da Amazônia no Peladão 2019 (Foto: Arquivo Ball Cat's)

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Alegria e envolvimento para resistir


Com 11 anos de fundação, Barcemonas (PA) é a equipe pioneira do futebol
LGBTQIAPN+ da região Norte do Brasil (Foto: Arquivo Barcemonas)

Nossa viagem em visita ao momento de formação das primeiras equipes LGBTQIAPN+ do Brasil segue rumo no sentido oposto da expressão “do Oiapoque ao Chuí”, deixando os pampas gaúchos em direção ao norte do Brasil, mais especificamente a Ananindeua (PA). Nesse município, região metropolitana da capital Belém, um grupo de amigos gays se inspirou no futebol feminino para começar a praticar a modalidade mais popular do país.

Ananindeua (PA), abril de 2010

“Frequentando os jogos de amigas, surgiu a ideia de montarmos um time totalmente formado por gays para jogar contra equipes femininas. O que inicialmente seria só uma brincadeira fez surgir, com o tempo, o pensamento de firmar uma equipe de fato, chamada As Maluquinhas Gay”, conta Jhonata Nascimento, popularmente conhecido como Vassourinha.

A iniciativa dividiu opiniões na região. Segundo o membro da diretoria e secretário da equipe, as palavras de incentivo dividiram espaço com os comentários maldosos, que persistem até hoje, algo enfrentado pelas equipes inclusivas, em geral. “Mas a gente se mantem firme no amor pelo esporte e pela causa LGBTQIA+”, reforça.


Formação inicial do Barcemonas (PA), ainda como As Maluquinhas Gay,
que defendeu a equipe entre 2010 e 2014 
(Foto: Arquivo Barcemonas)

Inspiração no Velho Continente

O nome escolhido permaneceu por quatro anos. Foi quando bateu mais forte a paixão por um clube do outro lado do Atlântico. “Nosso atleta e vice-diretor Artur era muito fã do Barcelona e queria trazer algo que homenageasse o clube e, ao mesmo tempo, fizesse uma referência à nossa comunidade LGBTQIA+”, relembra o atacante e membro da direção do time que passou a se chamar Barcemonas.

A esse trocadilho, por sinal, se rendem inclusive aqueles quem não conhece tão bem o esporte inclusivo, encantados com a perspicácia do jogo de palavras. Os nomes bem-humorados, por sinal, são uma característica dos grupos esportivos LGBTQIA+, o que, por si só, já renderia uma matéria à parte. Fato é que o Barcemonas passou a ser cada vez mais conhecido em sua cidade e estado, ganhando a mídia e, finalmente, um novo salto foi dado em 2019, com a filiação à LiGay Nacional de Futebol.

Jhonata avalia as mudanças no cenário esportivo LGBTQIA+ da fundação da equipe, em 2010, até hoje: “Naquela época não se tinha muitas equipes, hoje a gente percebe cada vez mais o surgimento de novas equipes, algumas das quais nos procuram para dizer que se inspiraram em nós. Quando olhamos para alguns anos atrás, vemos uma brincadeira se tornar algo de grande magnitude e encorajou o surgimento de novas equipes do interior do nosso estado”.

Prestes a disputar a Champions LiGay pela primeira vez em 2020, a equipe teve seu sonho adiado devido à pandemia de Covid-19, mas aguarda com ansiedade a oportunidade de se unir a dezenas de grupos esportivos LGBTQIAPN+: “Estávamos na fila de espera para participação na LiGay, mas agora com as seletivas regionais, vamos disputar uma vaga com outras equipes da região Norte, estamos ansiosos”, conta Jhonata, que tem um bom motivo para dizer que traz mais “alma” à equipe: cabe a ele a missão de dar vida a Monacletty, a mascote humana do Barcemonas, uma empreitada ousada de marketing que aproxima o time de sua torcida conquistando fãs por onde passa.


Monacletty venceu a votação nas redes
sociais e nomeou o mascote, então ainda
de pelúcia (Foto: Arquivo Barcemonas)

Do escudo à pelúcia e, então, à vida

Apesar de o grupo ter completado 10 anos de existência e resistência em abril de 2020, a comemoração só veio em agosto, devido ao cenário causado pela pandemia, mas isso não foi motivo para deixar de inovar: foi decidido que o unicórnio presente no escudo ganharia uma forma concreta, inicialmente em pelúcia.

Nada mais democrático que eleger o nome da mascote por meio de votação nas redes sociais. Dentre as quatro opções listadas no Instagram e no Facebook para escolha de integrantes da equipe de futebol gay e feminino e também do público em geral, Monacletty foi a vencedora, batizando o pequeno unicórnio que logo passou a viajar com o time nos compromissos pelos gramados e quadras do Pará e do Amazonas.

Mas não era o suficiente para a diretoria, que teve a partir de uma novela brasileira a ideia do passo seguinte. Um ator fantasiado de unicórnio na telinha rapidamente incendiou a mente de dirigentes do Barcemonas, que já vislumbravam ali a versão humana do mais novo xodó do grupo, inclusive alvo de reportagens da imprensa local.


Pé-quente, Monacletty posa com a equipe antes de sua estreia
com direito a goleada (Foto: Arquivo Barcemonas)

Quando se idealiza uma mascote humana como ação de branding e marketing, a aproximação com o público como reforço para a marca é uma das principais consequências do uso dessa ferramenta. O êxito da mais nova integrante não poderia ser maior, na opinião de Jhonata.

“A interação é perfeita. Onde o Barcemonas ia levando a Monacletty, o público ia junto para ver as brincadeiras, nossa animação. Ela foi um motivo a mais para irem nos assistir, foi a cereja do bolo”, conta o rapaz, conhecido em sua região como “Vassourinha”, lembrando que o xodó da torcida acompanha o time apenas nos jogos mais importantes, como os clássicos LGBTQIAPN+ e as partidas disputadas em campo de grama natural, terreno onde a equipe atua de forma mais tradicional.

Alegria para todos

A mascote foi pé-quente, diga-se de passagem: o dia 16 de maio marcou a estreia de Monacletty animando a torcida em meio a uma sonora goleada de 5 a 0. Na partida seguinte, um clássico local do futebol LGBTQIAPN+ e nova vitória do Barcemonas, dessa vez por 1 a 0. Nos dois compromissos da equipe, quem tentasse revelar quem animava a torcedora n°1 da equipe descobriria um Jhonata que entra de fato na brincadeira.

Já conhecida em sua região, Monacletty quer ser apresentada
aos outros estados do país (Foto: Arquivo Barcemonas)

“Eu, que fico dentro dela, não tenho nem palavras para dizer como me sinto. Viro criança de novo. O pessoal já sabe que sou eu, mas quando estou lá, nem me chamam pelo meu nome, mas pelo da mascote. Isso para mim já é um reconhecimento, um carinho por mim e pelo time”, conta, entusiasmado.

Quando se trata do público infantil, não é difícil entender por que o rapaz pensava, desde o início do processo de construção da Monacletty, em uma mascote que traria alegria para as crianças. “Numa viagem ao município de Augusto Corrêa, bem distante de Belém, encontramos muitas crianças. Onde a mascote ia, elas seguiam junto. Lá os pequenos não tinham acesso a muito entretenimento, então era uma grande diversão para eles. Aproveitamos também para fazer uma distribuição de doces e chocolates para eles”, relembra Jhonata, que já estabeleceu a próxima meta para a personagem à qual dá vida:

“A Monacletty já circulou bastante por aqui, é bem conhecida aqui na região. Agora queremos levá-la para outros estados. Quem sabe, nossa equipe conseguindo a vaga na Champions LiGay 2022, seja a chance de mostra-la para o Brasil?”

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Homenagem concretizada em representatividade

                            
Grupo do Magia (RS) em 2013, na quadra onde os encontros aconteciam:
e
quipe começou a ser formada ainda no futsal (Foto: Arquivo Magia)

Depois de conhecer o pioneirismo do Real Centro (SP) em reunir gays fãs de futebol para encontros semanais para praticar o esporte que amam num ambiente seguro e livre de qualquer preconceito, nossa viagem no tempo segue para o sul do Brasil, 15 anos depois da primeira pelada dos pioneiros da inclusão no Ibirapuera.

Porto Alegre (RS), março de 2005


O pontapé inicial para a formação do
Magia (RS) foi dado em um bar de
Porto Alegre (Foto: Arquivo Magia)


Quem disse que a combinação bar + futebol não vale para as pessoas LGBQIAPN+? Se para a equipe paulista as peladas sempre terminavam em bebida e resenha, foi em um desses estabelecimentos que um grupo de amigos na capital gaúcha teve, no começo de 2005, a ideia de se juntar para bater bola. “A galera estava num bar, começaram a falar de futebol e pilharam a ideia de jogar. Marcaram em uma quadra de futsal em um colégio de freiras, onde os encontros aconteceram durante muito tempo”, conta Carlos Renan Evaldt.

O início nas quadras não impediu que o time que viria a se tornar o Magia Sport Club (RS) se adaptasse ao futebol 7 que viria a consagrar o movimento nacional de equipes LGBTQIAPN+ de futebol. O mergulho de fato nessa empreitada aconteceria em meados de 2017, quando souberam da realização da primeira edição da Champions LiGay, mas a decisão de oficializar a criação de uma equipe propriamente dita aconteceu meses antes, a partir de uma situação que marcou os integrantes.

“Em fevereiro de 2017 tivemos uma grande perda no time. O Junior, que organizava os encontros e incentivava o pessoal a comparecer, foi acometido por uma doença rara e faleceu em questão de três semanas. Antes da despedida dele fizemos uma oração em quadra e nos questionamos se pararíamos ou continuaríamos com a equipe. Decidimos continuar até mesmo como homenagem a ele”, relembra Renan, que assumiu naquela ocasião a organização do grupo como equipe de fato.


Equipe do Magia em dia de pelada em 2016, ainda com Junior
(de amarelo, mais à direita), em homenagem a quem o grupo decidiu
oficializar a criação da equipe (Foto: Arquivo Magia)

O passo seguinte foi a escolha das cores, que não poderia ter sido mais democrática em um estado que é cenário de uma das maiores rivalidades do país: o azul do Grêmio combinado com o vermelho do clube para o qual Renan torce, o Internacional. A encomenda do primeiro uniforme, em março de 2017, pavimentava o caminho para o pioneirismo na região, que também se estendeu para outros esportes que o Magia abriu ao público, como o vôlei, o handebol e o jiu-jitsu.

Antes disso tudo, uma nova homenagem ganhou contornos concretos no escudo do clube. Partindo do princípio segundo o qual estrelas em escudos representam títulos conquistados, muitos poderiam se perguntar o motivo de uma ter sido inserida no escudo de uma equipe recém-criada. Renan explica:

“Quando fizemos o nosso escudo, colocamos uma estrela que representa o Junior e todo o esforço que ele fez lá no início para manter viva a essência do Magia, então a estrela que temos é uma homenagem a ele e também a outras pessoas que fizeram parte da nossa história e, mesmo não estando mais conosco no time, seguem em nossos corações”, conta o atual presidente.

Expansão impulsionada pelas redes

Levando em consideração que só em 2010 nasceria a próxima equipe com propósito inclusivo, seriam mais cinco anos apenas com dois grupos em ação pela representatividade LGBTQIAPN+ no cenário do futebol. Só a partir da oficialização do Magia, no entanto, foi possível estabelecer o contato com outros times, como uma grande rede de inclusão e diversidade no esporte. As redes sociais foram, na opinião de Renan, o fator decisivo para esse alcance.

“A gente vivia numa ‘ilha’ aqui no Sul, não sabíamos da existência de outras equipes e não tínhamos a noção da importância disso tudo até 2017. As redes sociais proporcionaram esse contato com as equipes do restante do Brasil, sobretudo de Rio e São Paulo. O motivo desse hiato foi a falta de contato e de informação”, destaca, acrescentando que a Prefeitura de Porto Alegre chegou a promover um evento que reuniu equipes com a mesma proposta, mas que não foram à frente.


Primeira edição da Champions LiGay, no Rio, em 2017, foi
um divisor de águas para o Magia se considerar parte de um movimento
nacional de diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Uma vez iniciado esse contato interestadual, o Magia confirmou a participação na primeira edição da Champions LiGay, no Rio de Janeiro. A competição firmaria o futebol 7 society como o terreno padrão das competições entre equipes com propósito inclusivo, levando os gaúchos a trocar as quadras de futsal pelos gramados sintéticos, algo novo para 90% da equipe, segundo o dirigente. Finalmente se abriam para a mais nova equipe esportiva LGBTIAPN+ as cortinas de um movimento que já ganhava contornos nacionais, com o aparecimento de focos em diferentes estados.

“Ninguém na nossa ‘bolha’ tinha dimensão do que era o esporte LGBTQIAPN+ até 2017. Aquele ano foi um divisor de águas para nós, que não pensávamos em disputar nada porque sabíamos que não seríamos bem-vindos entre as equipes ‘tradicionais’. Depois da primeira LiGay, no Rio, fomos descobrindo todo um universo. Soubemos que existem equipes inclusivas na Europa e nos Estados Unidos e também que é realizada uma ‘olímpiada’ (os Gay Games). A descoberta de que não estávamos sós no esporte e que podíamos disputar um campeonato sem ser hostilizados foi uma sensação maravilhosa”, desabafa.

A possibilidade de furar essa bolha e fazer contato com grupos esportivos com proposta inclusiva de outros estados foi proporcionada pelas redes sociais. Wagner Xavier de Camargo, pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, analisa a contribuição dessas ferramentas para o crescimento do movimento.

“Virou uma febre isso de mostrar que ‘sim, nós podemos jogar futebol’, o que é muito positivo. As redes sociais são um elemento fundamental, sem elas isso não teria acontecido. Houve grupos de diferentes modalidades em diversos lugares, mas nunca como um movimento sistematizado, talvez pela falta de divulgação. As redes foram um fator importantíssimo para esse crescimento, até mesmo pelo fator motivação de ver que outros estão fazendo”, conta o pesquisador, que encontrou, nos Gay Games 2006, em Chicago, atletas do Rio de Janeiro jogando voleibol juntos.


Futebol feminino é mais uma das vias pelas quais o Magia milita no cenário
da inclusão e da diversidade no esporte (Foto: Arquivo Magia)

Conservadorismo: retrocesso e combustível ao movimento

Para Renan, comparar o cenário da inclusão no esporte entre o ano de fundação do Magia e a luta que as equipes enfrentam hoje torna inevitável envolver o fator político e a onda de conservadorismo incitada por Jair Bolsonaro, que assumiu a presidência em 2018.

“Em 2005 acredito que o cenário infelizmente era melhor que hoje, já que a conjuntura política era muito mais favorável ao LGBT+. Com a chegada desse governo de direita e os ‘incentivos’ do presidente, as pessoas se sentiram mais livres e mais à vontade para agredir, ofender e agir de forma LGBTfóbica. Não que em 2005 o cenário fosse bom, mas hoje vivemos algo pior. Chegávamos para jogar e recebíamos olhares de desconfiança, tipo ‘o que vocês estão fazendo aqui?’, mas acredito que houve um retrocesso grande na questão da aceitação”, analisa o presidente do Magia.

Na opinião de Wagner Xavier, o boom do surgimento de equipes inclusivas entre 2015 e 2017 se ancorou no fato de o conservadorismo ainda não ter avançado naqueles anos como a partir das últimas eleições presidenciais. Por outro lado, segundo o pesquisador, o crescimento da direita também fortalece a vontade das pessoas LGBTQIAPN+ de lutar por seus direitos, inclusive no esporte.

“Além do contato proporcionado pelas redes sociais, também se tinha (até 2017) um recrudescimento de valores conservadores e, com isso, se tem ganhos sociais em todas as esferas, inclusive no esporte. (De 2018 para cá) temos vivido esses tempos sombrios de conservadorismo e uma reação a isso, tanto na sociedade quanto no esporte, é mostrar que as pessoas LGBTQIAPN+ podem praticar esporte. Esse movimento (da diversidade no esporte) é irreversível e tem um lastro de desenvolvimento bastante pronunciado nos próximos anos, principalmente com o fim da pandemia”.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Pioneirismo em cenário adverso

 


De azul e amarelo, Real Centro (SP) participa de torneio
entre equipes LGBTQIA+, algo impensável na década de 1990,
quando a equipe se formou (Foto: Arquivo Real Centro)

Se fosse possível estabelecer um marco inicial no esporte LGBTQIA+ no Brasil em termos de integração de equipes, sobretudo no contexto do futebol, 2017 seria esse divisor de águas. Naquele ano, mais especificamente entre junho e julho, os Jogos da Diversidade – que você conferiu nas postagens anteriores aqui no blog – e a primeira edição da Taça Hornet da Diversidade – que você vai ver logo, logo em nova matéria – proporcionaram o início de um movimento que viu nascerem dezenas de agrupamentos esportivos LGBTQIA+ Brasil afora.

Isso não significa, no entanto, que outras equipes já reunissem pessoas com o propósito de inclusão e diversidade. Ainda sem uma estrutura que os unificasse em uma só causa, grupos LGBTQIA+ já praticavam o esporte mais popular do país e proporcionavam a seus integrantes espaços de lazer, sociabilidade e prática da modalidade sem o risco de sofrer o preconceito ao qual estariam sujeitos em outras circunstâncias.

São Paulo (SP), março de 1990

Em 1990 muitos dos atuais protagonistas da onda inclusiva promovida pela LiGay Nacional de Futebol e pela popularização dos Gay Games por aqui ainda eram crianças e outros sequer eram nascidos. Era um ano simbólico: em março a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirava a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

Em uma viagem pelo túnel do tempo, o mesmo Ibirapuera que recebeu os Jogos da Diversidade 27 anos depois passou a ser frequentado por um pequeno grupo de amigos, que se reuniam aos domingos para jogar bola. Ao fim das partidas, a cerveja e a resenha eram garantidas em bares frequentados por gays e simpatizantes no centro da capital paulista, onde convidavam aqueles que se viriam a se tornar novos membros. O fato de muitos dos integrantes participarem de times pelos quais disputavam torneios amadores levou os amigos à decisão de participar de competições. Nascia, ainda sem essa denominação de forma oficial, a primeira equipe inclusiva do Brasil, o Real Centro (SP).

“Àquela altura, não sabiam que nosso time era formado por gays. Não deixávamos transparecer por conta do preconceito, que era muito grande nos anos 90 e continua sendo até hoje. Todo jogo tinha a seriedade que é vista no futebol “hetero”. Já houve brigas entre jogadores, mas tudo se resolvia no campo, na quadra. Saíamos sempre das partidas para os bares do centro ou para a casa de algum dos jogadores. Lá sim dávamos pinta e close, fazíamos a festa, no bom sentido”, relembra Gil Lima, membro da diretoria do Real mais ligado à parte social da equipe, que cuida da organização de eventos e festas.


Em 1992, a equipe do Real Centro (SP) foi ao Rio de Janeiro para disputar
competição que teve entre os árbitros Jorge José Emiliano dos Santos, o popular
Margarida, primeiro árbitro assumidamente homossexual, falecido três anos depois
em decorrência de sequela
s da AIDS (Foto: Arquivo Real Centro)

Cenário segregacionista como pano de fundo

Pós-doutor em Antropologia Social e doutor em Ciências Humanas dedicado a estudos de corpo, gênero e sexualidade na educação física e nos esportes, o pesquisador Wagner Xavier de Camargo, traça um panorama da visão da época sobre a pessoa LGBTQIAP+ para ajudar na compreensão do cenário encontrado pelos representantes do Real quando da formação do grupo.

“A homossexualidade tinha acabado de sair da classificação de doença mental. Vivíamos o boom da contaminação pelo vírus HIV. Havia um preconceito social de que a AIDS era uma ‘peste gay’. Os espaços de entretenimento então GLS eram segregacionistas, exclusivistas, onde pessoas eram muitas vezes questionadas sobre sua identidade de gênero e orientação sexual”, relembra.

Comparando o que aqueles rapazes encontraram com o momento atual, de surgimento em larga escala de equipes com proposta inclusiva, Wagner é taxativo: “o momento em que o Real surge era muito peculiar, nada parecido com o que é hoje em dia. Havia preconceito na sociedade e claramente no esporte, como ainda há hoje, mas era de uma natureza mais perniciosa”.

Equipe do Real Centro (SP) em 2021: mescla de gerações é marca
da equipe, em constante renovação (Foto: Arquivo Real Centro)

Integração e mistura de gerações

A primeira participação da equipe em uma edição da Champions LiGay, em 2019, foi a maior evidência de que, encorajado pela expansão do movimento, o Real Centro estava definitivamente integrado à causa. “Quando eles vêm a público e se assumem como equipe que acolhe a diversidade, vejo aí uma busca por recontar um pouco de sua história, da proposta inclusiva numa realidade muito mais dura para o acolhimento dessas identidades e orientações, ao mesmo tempo em que se colocam numa vanguarda por terem tradição nisso, mostrando uma capacidade de releitura de si própria e uma nova proposta de trabalho a partir de dentro”, completa o pesquisador.

O posicionamento como equipe assumidamente LGBTQIA+ atraiu jovens como Eduardo Oliveira, então aos 20 anos de idade, às vésperas da Champions LiGay de Belo Horizonte, em 2019. “Me assumi cedo e estava procurando uma equipe assim. Parei de jogar bola com heteros por conta das piadinhas que ouvia. Fui muito bem recebido pelo Real e gostei muito de conhecer a história deles”, conta o zagueiro, hoje com 22 anos.

Um dos representantes da nova geração do Real Centro, Eduardo valoriza o aprendizado que tem no convívio com amigos que participaram dos primeiros anos da equipe azul e amarela. “Acho muito enriquecedora essa troca de vivências entre gerações. Eles enfrentaram muitas coisas nessa saída do armário. É muito importante a história que eles passam para a gente, que, ao se assumir em um tempo diferente, talvez pode não ligar para muita coisa. Eles passaram por uma luta grande lá atrás”, complementa.


Eduardo (em primeiro plano) deixou de se sentir à vontade em peladas devido
ao preconceito e integrou a equipe do Real (Foto: Arquivo pessoal do atleta)

Wagner Xavier vê como algo raro essa convivência entre gerações diferentes e uma “passagem de bastão” no contexto das equipes esportivas, mas acredita que seria necessária uma abordagem ampla para a compreensão mais específica dessas trocas.

“A geração mais nova é a chamada geração ‘do lacre’, já chega exigindo seus direitos, enquanto as mais antigas experimentaram primeiro o armário, a negação, depois o momento da saída do armário, a homofobia da sociedade, da própria família… muitos dos representantes dessa nova geração sequer sabem o que é viver dentro do armário, mas é algo que não se pode generalizar”, finaliza.

NO PRÓXIMO POST...

Acende em Porto Alegre a centelha da inclusão e da diversidade no contexto do esporte, com a formação do Magia (RS), em 2005. Era o segundo foco de um movimento que seguiria para a região Norte do país e viria a ganhar contornos nacionais.

A bola do lado de fora do armário

Primeira Champions LiGay, um marco na história do esporte LGBTQIA+ (Foto: Arquivo LiGay) Em 2017 eu certamente tinha a mente bem mais fechad...