segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Uma nova página para a tradição no Norte

 
Destaque no Peladão de 2013, Júnior Leocádio (ao centro, de chuteiras azuis)
fundou o 
Ball Cat's (AM) no ano seguinte (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Há quem diga que “pelada” é o lado informal do futebol, mas em Manaus, a coisa não é bem assim. O melhor exemplo de que isso é coisa séria é o Campeonato de Peladas do Amazonas, popularmente conhecido como Peladão, o mais longevo torneio amador do mundo, disputado anualmente desde 1973 e realizado sob organização da Rede Calderaro de Comunicação (RCC), gestora da TV local A Crítica.

Diferentemente do esporte profissional, lá não tem pré-requisito: a participação é livre, com direito a categoria feminina, infantil (“Peladinho”), master (a partir de 40 anos) e indígena, reunindo cerca de 20 mil atletas amadores em mais de 500 equipes. Coube a esse evento recheado de história e de significado social o papel de ser o pano de fundo para o maior passo que já foi dado em direção à inclusão e diversidade no futebol do estado.


Levando o Amazonas até na camisa: Ball Cat's é pioneiro na luta por inclusão
e diversidade no futebol no maior estado do país (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Manaus (AM), outubro de 2013


Representatividade de Júnior foi tema de matéria
da revista da Copa do Mundo de 2014, que trazia
destaques culturais e esportivos
 de cada estado
que foi sede do mundial (Foto: Arquivo pessoal)

Pedro Leocádio Neto Júnior era um dos milhares de jogadores participantes, mas o rapaz, conhecido como Pedrita, se diferenciava dos demais não apenas pela qualidade técnica que demonstrava em campo. Assumidamente homossexual, foi muito além da representatividade de mostrar que gay pode jogar bola: ele foi eleito em 2013 jogador-destaque do Peladão e virou manchete na mídia local e nacional. Seu protagonismo chamou a atenção de outros colegas LGBTQIA+, que demonstraram interesse em jogar, despertar esse que o motivou a criar a primeira Copa Gay de Futebol em Manaus.

Essa não foi, no entanto, a única reverberação do destaque alcançado por Junior dentro de campo: já em 2014, curiosamente no mesmo dia em que se comemora o aniversário da capital amazonense – 24 de outubro –, o próprio Pedrita montava a primeira equipe assumidamente gay de futebol do estado com o nome de Ball Cat's, da qual é presidente e atleta.

“O fato de eu ser conhecido e respeitado pela participação em campeonatos, inclusive com essa eleição de destaque no Peladão, trouxe ao time visibilidade e respeito por parte das equipes não LGBTQIA+. Jogamos contra todas em pé de igualdade e já ganhamos várias vezes. Assim vamos aos poucos conquistando nosso espaço e enfrentando o preconceito”, conta Júnior.


Partida do Peladão disputada pelo Ball Cat's no Estádio da Colina,
em 2019, ano da estreia da equipe na competição (Reprodução: Youtube)

O próprio Ball Cat's passou a disputar o Peladão em 2019, ganhando grande visibilidade com a exibiçao pela TV A Crítica de uma partida que disputou no Estádio Ismael Benigno  o Estádio da Colina , que foi, até os anos 70, o palco mais importante do futebol de Manaus. O posto foi perdido apenas com a inauguração do Estádio Vivaldo Lima, o Vivaldão, reconstruído para a Copa do Mundo de 2014 como Arena da Amazônia.

Levando o Amazonas na camisa, o time participou pela primeira vez de uma competição nacional com outras equipes LGBTQIAPN+ na quarta Champions LiGay, em Brasília (DF), estreando na Série de Acesso. Já na edição seguinte do evento, em Belo Horizonte (MG), os manauaras disputaram a divisão principal. Com a reformulação dos critérios de classificação para a principal competição inclusiva do país, eles buscarão na Copa Norte uma vaga para são Paulo em 2022, quando a capital paulista sediará pela segunda o "Brasileirão LGBT+" (anteriormente a cidade já havia recebido a edição do segundo semestre de 2018).


Depois da estreia em Brasília, a equipe voltou à Champions LiGay em Belo Horizonte,
no segundo semestre de 2019 (Reprodução: Instagram LiGay Nacional de Futebol)

Beleza que quebra tabus

A nota 10 no quesito representatividade se estende também para fora das quatro linhas. Toda equipe que se candidata a uma vaga no Peladão precisa apresentar uma rainha para participar de um concurso, sendo essa uma exigência para a participação no torneio, que tem duração estimada em 5 meses. Para o Ball Cat’s não foi o suficiente fazer história sendo a primeira equipe LGBTQIAPN+ no Amazonas e, consequentemente, no evento: logo em sua estreia, inscreveram uma mulher transexual como rainha da equipe.

O sucesso foi além do esperado: Stephany Vilaça conquistou o terceiro lugar dentre 461 candidatas participantes do Rainha do Peladão, competição paralela à disputa dentro dos campos e que premia a vencedora com um carro 0km e uma quantia em dinheiro. “Quebramos um enorme tabu na competição e isso para mim já foi uma enorme vitória não apenas para o time, mas para a comunidade LGBTQIA+ como um todo”, comemora Pedrita.


Stephany Vilaça com o troféu conquistado
na partida de abertura do Peladão 2019
entre as equipes estreantes naquela edição:
Ball Cat's venceu por 4x1 e levou a taça
para casa (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Quem pensa que beleza é o suficiente se engana: as candidatas encaram etapas eliminatórias com diferentes atividades, como entrevista com os organizadores, desfiles com banca de jurados – da qual participaram Adriana Bombom e Monique Evans, por exemplo –, até que sobrem 12 classificadas para um reality show intitulado “A Bordo – O Reality", exibido pela mesma emissora de televisão A Crítica, que promove o Peladão.

A bordo de um iate escoltado pela Marinha Mercante no meio do Rio Negro sem aproximação de qualquer pessoa externa ao concurso, as participantes são monitoradas por câmeras 24h por dia durante 35 dias e cumprem novas atividades eliminatórias, até que as três finalistas participem do concurso de beleza que funciona como etapa final, com voto popular.

Até 2019, Júnior tinha visto Stephany apenas duas vezes em Manaus, uma delas quando a musa se tornou rainha de bateria de uma escola de samba da cidade. Pedrita relembra o dia das inscrições no Peladão de 2019, quando foi oficializá-la como rainha do Ball Cat’s:

“Ela aceitou nosso convite logo no dia anterior à inscrição. Já no dia, chegando ao local, a coordenação do evento estava lotada de jornalistas querendo conhecê-la: tinha surgido na mídia que uma trans concorreria no concurso. O terceiro lugar foi uma conquista, ela só não ganhou porque aqui o pessoal não tem uma mente totalmente aberta para esse movimento, mas estamos trabalhando muito nesse sentido em diferentes modalidades”.


Matéria da TV A Crítica sobre a abertura do Peladão 2019,
que destacou a participação do Ball Cat's (Reprodução: Youtube)

Do Peladão para todo o Brasil

A participação no Rainha do Peladão fez a carreira de Stephany decolar. Na semana anterior à publicação dessa matéria ela foi miss trans da cidade de Lorena, no interior de São Paulo, para onde foi convidada por conta da repercussão que teve no Peladão de 2019. A moça foi a única representante de fora do município a disputar com as trans locais.

Stephany nas arquibancadas da Arena
da Amazônia no dia da abertura da edição
2021 do Peladão (Foto: Arquivo Ball Cat's)
“Minha história com o time é muito marcante para mim. Iniciamos um trabalho que não imaginávamos o quão grandioso se tornaria: primeiro time composto por homens gays a concorrer no Peladão, num esporte tão machista, tendo uma trans para representá-los como rainha. É muito gratificante saber que o esporte e a televisão estão abrindo essa oportunidade para nós, mulheres trans, exercermos essa representatividade. Pude ensinar como as pessoas poderiam nos tratar de verdade, tive uma voz que nunca imaginei ter”, conta Stephany, que passou a ser uma figura pública na capital amazonense, coordenando atualmente as mídias dos grupos de forró de Manaus, além de já ter sido rainha gay do Carnaval da cidade e também a primeira musa e rainha de bateria de escola de samba local.

Dois anos após seu pódio, a musa conta com o apoio de rainhas de edições anteriores para o concurso de 2021, no qual está entre as mais cotadas para vencer. Ela já avançou na primeira eliminatória e está entre as 100 classificadas. Como em todo reality show, polêmicas entre as participantes são normais, mas a rainha do Ball Cat's foi muito bem recebida pelas demais concorrentes, segundo Pedrita:

“Quando ela concorreu não houve nenhum comentário preconceituoso e ela foi muito querida no grupo das finalistas. Essa aceitação é uma grande conquista para nós”, conta o presidente da equipe, ciente de que a popularidade de Stephany já fez com que ela recebesse convite de outras equipes para representá-las como rainha no Peladão, mas o coração dela bate mesmo pela equipe que a projetou para o Amazonas, a região Norte e todo o país.

“Foi uma porta que se abriu trazendo inúmeras outras possibilidades para mim, não tenho palavras para agradecer ao Junior e ao time pela mudança que trouxe para minha vida, com a visibilidade da nossa luta pelas nossas causas”, afirma, já projetando a sequência do concurso atual e também do time no Peladão: ”acredito que em 2021 vamos fazer um trabalho muito melhor do que vínhamos imaginando, foram dois anos de planejamento e preparação para essa nova edição e queremos ir muito mais longe, não apenas pela preparação do time, mas pelo carinho que temos recebido do público. Somos respeitados hoje, nosso time é elogiado pelas equipes adversárias. A gente quer esse respeito pela qualidade do nosso trabalho e por nossa competência”.


Ball Cat's e sua rainha Stephany nas arquibancadas da Arena
da Amazônia no Peladão 2019 (Foto: Arquivo Ball Cat's)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

A bola do lado de fora do armário

Primeira Champions LiGay, um marco na história do esporte LGBTQIA+ (Foto: Arquivo LiGay) Em 2017 eu certamente tinha a mente bem mais fechad...